CLOROQUINA 2.0: O NEGACIONISMO MÉDICO E O RETORNO ÀS AULAS
Grupo dos 10 mil médicos em prol do "tratamento precoce com cloroquina", em evento de lançamento da campanha com Bolsonaro no Palácio do Planalto.
Demorei muito para escrever esse texto porque tinha receio de que
pudesse ser considerado um artigo negacionista. Entretanto, chegamos a um ponto
que não considero mais possível deixar de externar o que vem me incomodando
desde o começo da pandemia. Para ser sincero, desde as falas do contaminado e
quase moribundo Osmar Terra, que, por pouco, não foi dessa para uma melhor (ou
não). De todas as categorias profissionais bolsonaristas, há uma que se destaca,
ao lado dos caminhoneiros, pelo conservadorismo, reacionarismo e apoio acrítico
ao Bolsonaro: os médicos. Lógico que toda generalização possui as suas exceções
e assimetrias, mas a generalização é um recurso epistemológico e científico que
possui a sua validade quando feita por meio da observação e sistematização.
Penso ser o caso.
Muitos médicos e
associações médicas se notabilizaram por posições extremamente conservadoras
nos últimos anos. Sempre foi assim, mas, para o objeto do texto, deve-se
delimitar. Começou com o Mais Médicos. Sem entrar no mérito do programa, o fato
é que a defesa das entidades médicas se restringia basicamente à defesa de
reserva de mercado, mesmo que os locais de atendimento do programa não fossem
objetos de desejo dos médicos brasileiros. É o papel de um conselho
profissional: cuidar do nicho de mercado proibindo a entrada de outsiders a fim de evitar a desvalorização do diploma com a popularização do curso e/ou de
profissionais. O argumento de qualquer conselho é uma música de uma nota só: a
famigerada e disputada qualidade. Assim, garante-se o retorno monetário, fundamental
às famílias de classe média tradicional, que precisam deixar como herança o
capital social da família, nem que seja um consultório chumbado com paredes
descascadas – o caso da maioria hoje em virtude do avanço da taxa de lucro dos
planos de saúde sobre o valor das consultas. Mandetta não foi ao Ministério da
Saúde passear. Foi o grande representante desse processo político dos médicos,
procurando conciliar o desejo da categoria com o desejo dos empresários dos
planos de saúde ante a ignorância de um médico médio sobre esse evidente
paradoxo.
O “cubano” foi o nó górdio da
relação com o programa, fazendo com que os médicos caíssem no anticomunismo, a
mediação que muitos percorreram até chegar no bolsonarismo. Com a vitória de
Bolsonaro e a capilarização do bolsonarismo, os pacientes e usuários assistiram à emergência de caricaturas de jalecos. Antes acostumados com Doctor Rey,
passamos a assistir atônicos médicos e mais médicos promovendo-se em redes
sociais com tratamentos miraculosos e “dicas” imperdíveis, sempre com uma
propagandinha. O lobby de empresas farmacêuticas em consultórios e postos de
saúde transformou-se em propaganda barata no Instagram. Com a
pandemia de Covid-19, a coisa piorou. Passamos a ver médicos defendendo
tratamentos miraculosos contra Covid-19 em lives e afins. Surgiu até médico
receitando qualquer coisa para que pacientes prediletos da extrema-direita ficassem desobrigados a
usar máscaras em aeroportos. Mas não podemos esquecer os médicos contrários à
“vacina chinesa”, hoje aos montes em redes sociais e na mídia de direita em
rádios e canais de Youtube.
Mas esses caricatos
são fáceis de perceber o charlatanismo. A questão são os difíceis. Quem são?
São aqueles que aparentam a normalidade de um rostinho branco de filhinho de
papai que estamos tão acostumados a ver nas fotos de formatura, popularizados
com as redes sociais. São aqueles que possuem cabelos brancos lisos, dando-lhes
ares de experiência e sabedoria, tal qual em filmes de hollywood. São aqueles
que até já perderam os cabelos, mas botam uns belos óculos para dar aquele ar
de seriedade.
Para o negacionismo
foi um pequeno passo. Imersos no bolsonarismo, compraram o discurso
bolsonarista sobre a cloroquina. Pulularam casos e mais casos de médicos
recomendando em suas redes sociais e em programas de rádio, TV e de Youtube
tratamento precoce da cloroquina. E, em outro pequeno passo, o Conselho Federal
de Medicina publicou a seguinte pérola em protocolo: uso da cloroquina conforme
autonomia do médico em três situações: 1) pacientes com sintomas leves, em início
de quadro clínico e com diagnóstico confirmado; 2) pacientes com sintomas
importantes, com ou sem recomendação de internação; 3) pacientes críticos na
UTI com uso de ventilação mecânica. Traduzindo, em todos os casos!
Em setembro, com os
resultados das pesquisas confirmando o que já indicavam em abril, quando o
protocolo foi produzido, o Conselho Federal de Medicina se recusou a revê-lo,
confirmando o que todos sabiam: o parecer do Conselho foi feito para atender a
interesses políticos do governo federal e de sua base conservadora. E assim
estamos até hoje, janeiro de 2021. Nem mesmo a notícia de 22 de dezembro,
publicada no Le Monde, de que os médicos franceses que recomendaram a
cloroquina serão processados pelo Conselho Federal de Medicina Francês por
charlatanismo, fez o Conselho brasileiro mudar de posição. Devemos completar a
dedução: o Conselho Federal de Medicina brasileiro é charlatão, ou, ao menos,
seria se fosse julgado pelo parente francês. Continua com um protocolo
permitindo que médicos receitem cloroquina, quando comprovadamente o seu uso
não tem influência positiva (eficácia), mas possui uma gama de consequências
negativas.
Lembremos do artigo
283º do Código Penal: é crime de curandeirismo “inculcar ou anunciar cura por
meio secreto ou infalível”. Receitar cloroquina inculca uma cura por meio
secreto da mesma forma que os feijões do pastor Valdomiro. Mas essa espécie de
charlatanismo não deveria nos surpreender, pois a autorização e legitimação
legal do ato médico sobre a cloroquina revela uma espécie de privilégio de
classe e de raça. Historicamente o candomblé, que nunca propôs cura em substituição à ciência, não obteve a mesma complacência. A surpresa dos desavisados se dá por uma confusão simples: médico não é
cientista. O contrário está entranhado no senso comum. Médico é apenas uma
profissão, nada mais. Da mesma forma que engenheiro elétrico não está
necessariamente habilitado a discorrer cientificamente sobre as minudências
moleculares da eletricidade, ou um professor não está necessariamente
habilitado a discorrer cientificamente sobre a psicogênese da escrita, um
médico não está necessariamente habilitado a discorrer cientificamente sobre a
propagação, transmissibilidade e a ação de um vírus. Confundimos status
profissional com domínio científico apurado. Domínio cientifico apurado é com o
cientista mesmo. Com engenheiros, professores e médicos, espera-se que tomem
boas decisões práticas amparadas pelo conhecimento cientifico ministrado na
graduação, o que já está de bom tamanho. Portanto, sobre o vírus, é melhor um
cientista que estuda sistematicamente vírus, seja ele médico de formação, seja
biólogo ou o que for, desde que validado pela comunidade cientifica. Em suma,
médico é apenas um diplomado habilitado a exercer uma profissão regulamentada.
É assustador o status
que o médico possui para falar toda e qualquer ordem de barbaridades, contrapondo-se a cientistas e sendo usados por veículos negacionistas para fazer propaganda a Bolsonaro. Lógico
que isso está relacionado com o status econômico e social da classe que ocupa
essa profissão, aproximadamente como aquela frase que usamos com juízes e afins:
“pensa que é Deus”. Não é uma profissão popular, é uma profissão da classe
média; e o Conselho está aí para fazer valer essa regra. Quando um professor da
Escola de Saúde, da prestigiada Santa Casa de São Paulo, ministrou uma aula
para os seus alunos com uma máscara preta, a fim de “imitar” um paciente do
SUS, fazendo uma voz caricata e trejeitando a fala, deve-se constatar que essa
visão sobre o povo brasileiro é predominante entre os médicos, caso contrário
ele não faria. Parte do atendimento grosseiro que é costumeiro a muitos médicos
no SUS deve-se à falta de estruturas, sem dúvidas, mas também à tipificação,
esteriotipação e racialização que a classe social que ocupa a classe profissional faz da classe social
que atende. Em sua defesa, o médico-professor, que no caso deve ser
pesquisador, disse que não sabia que era um ato racista. Se assim o for,
evidencia-se o descolamento da classe profissional (e da classe social) ante o
povo brasileiro, o que não deixa de ser racismo, afinal a ignorância não é uma benção. E lógico, os médicos pertencem a um
segmento social da classe média tão específico que todos parecem saídos de uma
máquina de produção. Entretanto, a denúncia dos estudantes talvez mostre que
isso esteja mudando. Talvez...Vamos ver o futuro...
A nova moda
negacionista agora é a dos pediatras. Não é que os pediatras resolveram falar
sobre o retorno às aulas? Nada contra, faz parte do exercício democrático, mas
não se pode deixar de explicitar que a inserção no debate público se dá por um
discurso de autoridade que lhes dá o status de cientistas. Como não o são,
cumpre constatar que todo discurso de autoridade esconde um conjunto quase
infindável de falácias, como apontou Aristóteles. Vamos a duas delas.
A primeira é a minha
predileta, pois é da minha área profissional e científica. Os pediatras (e médicos de uma forma geral) estão batendo em uma
tecla: o isolamento afeta a saúde mental das crianças e jovens. Sim, lógico!
Ocorre que na Educação há publicações de mais de quarenta anos atestando que ir
à escola provoca adoecimento psíquico, tanto em professores quanto em alunos. É
um grande consenso científico na área. A escola é um espaço de adoecimento tanto de
estudantes quanto de professores. Isso é um dado científico! Contudo, esse dado
não permite que defendamos que, para sanar o adoecimento mental que ocorre
principalmente no ensino médio, os alunos não compareçam mais às escolas. Entre
os prós e contras entre ir e não ir à escola, consideramos que é melhor ir, pois a escola
permite a socialização e a ampliação do repertório social do indivíduo.
Preferimos atuar na atenuação e mitigação dos fatores de adoecimento e
despertencimento do aluno à escola. O despertencimento, por sua vez, é uma das chaves da evasão, que
ocorre por múltiplos fatores, quase sempre somatizados em mudanças bruscas na
saúde mental do estudante.
Ora, mesmo sabendo
que a escola, a instituição, provoca adoecimento e somatização de doenças psíquicas,
ninguém defende a desescolarização ou a educação descolarizada – até há gente
que a defenda pelo motivo exposto, mas fora do círculo acadêmico e científico.
Portanto, o contrário também é verdadeiro: em uma pandemia, deve-se mensurar se
ela é um fator contraproducente à escola e ao aluno em sala de aula, na
dinâmica de uma sala de aula e de uma escola, assim como os pesquisadores da
área de educação fazem com o dado de que a vida institucionalizada da escola
provoca dessabores psíquicos em uma parcela significativa dos alunos e professores. Deve-se
analisar os condicionantes e os pormenores, como a de pensar se a propagação por meio da escola é um contra menor ao pró de o aluno supostamente não adoecer psiquicamente. Como pensar em educação infantil
sem interação? Cada qual ficará em um quadrado desenhado no chão, que quando for desobedecido irá
para a direção? Qual é a dinâmica pedagógica? Provavelmente, os pediatras
tenham uma ideia de educação baseada em suas próprias escolarizações, apenas,
ou nas escolarizações de seus filhos, todos em escolas privadas próximas às
“escolas de elite”, aquelas da elite paulistana.
A segunda falácia é o
argumento usado por organizações empresariais da educação: se os bares abriram,
por que as escolas não abriram? O que dizer desse tipo de pergunta? Os bares
não deveriam ter sido abertos. Aliás, se os bares não tivessem sido abertos,
seria mais fácil promover o retorno das aulas. Essa polarização moralista, em que
objetiva transmitir a ideia de que a sociedade brasileira prefere bares a
escolas, reflete outro ponto de contato com o bolsonarismo. Quem a faz pode até
brincar de oposição a Bolsonaro, mas não passa de brincadeira de jardim de
infância.
Ora, o retorno das
aulas nos países que são objetos da imprensa – já que só reportam países da
Europa e os EUA – se deu sobre alguns patamares. Basicamente esses patamares
foram construídos pela comunidade cientifica internacional, quase todos
baseados em um estudo de Harvard: quantidade baixa de contaminados por cada 100
mil habitantes, testes e rastreio de contados efetivos dos contaminados. Ocorre
que, justamente pelo boicote bolsonarista e pela liberalização das atividades
econômicas não essenciais, não há nenhum dos três instrumentos em exercício. A
taxa de contaminados por cada 100 mil habitantes no Brasil é uma das mais
altas do planeta; não há testes, o que ainda revela uma imensa subnotificação;
e o rastreio é uma piada que nem merece ser comentada: nunca houve. Portanto,
estamos cientificamente no escuro. Não sabemos onde estamos e nem para onde
vamos. Torcemos para uma vacina porque foi a única coisa que restou.
Qual seria o efeito de
propagação aos mais velhos? Por exemplo, em Ribeirão Preto, estado de São
Paulo, a pesquisa do comitê responsável pela elaboração de um protocolo
sanitário e de rotina escolar constatou que na rede municipal de ensino algo em
torno de 35% dos alunos moram com avôs. Seriam 17.500 famílias. Em uma taxa de
adoecimento de 10% de pessoas que precisam de intervenção hospitalar, seriam
1.750 famílias. Se contabilizarmos 1,5 para cada família (avo e avó, mas
retirando meio ponto para expressar de alguma forma mortes de um do casal),
seriam 2.625 pessoas, em uma cidade com pouco menos de 50 leitos públicos de UTI para a
macrorregião, contando com o Hospital das Clínicas da USP, hoje com 100% dos
leitos para Covid-19 ocupados. A mesma conta fez a Prefeitura Municipal de São
Paulo no fim de 2020. Se já há dados que assintomáticos transmitem o vírus, especialmente
entre os cuidadores das crianças e jovens, é possível retornar sem
planejamento, como se fosse um bar?
Os pediatras tocaram em tais questões? Os pediatras compreendem a dinâmica de uma escola que não seja de elite, como a de seus filhos? Ah, mas a escola privada está aberta e a pública não, promovendo desigualdade, como agora martela a UNICEF, entidade que não se debruça sobre educação. Verdade, mas em um país sério, não seria aberto. Em outro país sério, seriam fechados, como um país com unidade nacional.
Nem mesmo a posição que relaciona o
isolamento ou atividades escolares remotas ao adoecimento é explicitada por
estudos. Sabe-se que há uma relação, mas atendimento em consultório pessoal não
é lá um procedimento científico digno de ser um resultado de pesquisa. No
máximo, é uma impressão pessoal – espera-se que embasado, ao menos – sobre um
público restrito, provavelmente de perfil econômico próximo ao perfil dos
pediatras. Não há isolamento de variáveis, entrevistas, não há nada
sistematizado, tampouco ampliado para o conjunto da população levando em
consideração outros fatores, como a própria desigualdade econômica. Estamos assistindo a
uma nova onda de novos Osmares Terras. Um cabedal de bobagem negacionista, tal
qual a cloroquina. Pode ser mais vistosa e bonitinha, mas é uma cloroquina 2.0.
Mas há apenas um lado positivo e negativo em tudo isso. O lado positivo é que a
atuação do Conselho Federal de Medicina e dos médicos-influencers sobre a
pandemia serviu para a desmistificação da classe médica; o lado negativo é que
a desmistificação ocorreu por meio da propagação do negacionismo, que venceu
sobre os médicos não negacionistas e a comunidade científica.
As pesquisas mais
recentes sobre as experiências de abertura de escolas no Reino Unido concluem
que elas foram uma das principais responsáveis pelo aumento das
contaminações. As escolas, abertas em novembro, foram o segundo
maior responsável por novos surtos, ficando à frente de hospitais, fábricas e
escritórios. Portanto, o único estudo estatístico que existe correlacionando
ambientes com contaminados, por meio do rastreio de contatos, com um exemplo
usado pelos pediatras negacionistas, atesta que a escola foi um fator
desencadeador de propagação da Covid-19, inclusive da nova mutação, que se
propaga com mais facilidade e já está no Brasil.
Não há ninguém que
discorde da necessidade e importância de retorno das atividades presenciais da
escola. Mas o retorno, segundo patamares defendidos pelos países que se tornam
exemplos na boca dos próprios pediatras (não cientistas), quando dizem que
quase todos os países retornaram as atividades, nem que seja por pouco tempo,
ocorreu politicamente sobre patamares científicos. Portanto, baixo índice de
contaminados a cada 100 mil habitantes, testes e rastreio de contatos efetivos
dos contaminados. O resto é balela! Quando saiu do controle, suspenderam, como
acabou de fazer a Alemanha e o Reino Unido. Mas, para isso, alguém precisa
considerar que saiu do controle. Aqui no Brasil, não há uma viva alma da
política brasileira que tenha a coragem de fazer publicamente essa constatação.
O retorno das atividades presenciais das escolas no Brasil está se dando
politicamente sobre patamares obscurantistas e negacionistas, logo,
anticientíficos. Essa é mais uma prova que Bolsonaro venceu! E tem os seus
“médicos” para fazer o serviço, desta vez ao lado dos governadores e prefeitos
que fingem alguma oposição à vitória de Bolsonaro.
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