CLOROQUINA 2.0: O NEGACIONISMO MÉDICO E O RETORNO ÀS AULAS

 

Grupo dos 10 mil médicos em prol do "tratamento precoce com cloroquina", em evento de lançamento da campanha com Bolsonaro no Palácio do Planalto.


Por Leonardo Sacramento

Demorei muito para escrever esse texto porque tinha receio de que pudesse ser considerado um artigo negacionista. Entretanto, chegamos a um ponto que não considero mais possível deixar de externar o que vem me incomodando desde o começo da pandemia. Para ser sincero, desde as falas do contaminado e quase moribundo Osmar Terra, que, por pouco, não foi dessa para uma melhor (ou não). De todas as categorias profissionais bolsonaristas, há uma que se destaca, ao lado dos caminhoneiros, pelo conservadorismo, reacionarismo e apoio acrítico ao Bolsonaro: os médicos. Lógico que toda generalização possui as suas exceções e assimetrias, mas a generalização é um recurso epistemológico e científico que possui a sua validade quando feita por meio da observação e sistematização. Penso ser o caso.

Muitos médicos e associações médicas se notabilizaram por posições extremamente conservadoras nos últimos anos. Sempre foi assim, mas, para o objeto do texto, deve-se delimitar. Começou com o Mais Médicos. Sem entrar no mérito do programa, o fato é que a defesa das entidades médicas se restringia basicamente à defesa de reserva de mercado, mesmo que os locais de atendimento do programa não fossem objetos de desejo dos médicos brasileiros. É o papel de um conselho profissional: cuidar do nicho de mercado proibindo a entrada de outsiders a fim de evitar a desvalorização do diploma com a popularização do curso e/ou de profissionais. O argumento de qualquer conselho é uma música de uma nota só: a famigerada e disputada qualidade. Assim, garante-se o retorno monetário, fundamental às famílias de classe média tradicional, que precisam deixar como herança o capital social da família, nem que seja um consultório chumbado com paredes descascadas – o caso da maioria hoje em virtude do avanço da taxa de lucro dos planos de saúde sobre o valor das consultas. Mandetta não foi ao Ministério da Saúde passear. Foi o grande representante desse processo político dos médicos, procurando conciliar o desejo da categoria com o desejo dos empresários dos planos de saúde ante a ignorância de um médico médio sobre esse evidente paradoxo.

O “cubano” foi o nó górdio da relação com o programa, fazendo com que os médicos caíssem no anticomunismo, a mediação que muitos percorreram até chegar no bolsonarismo. Com a vitória de Bolsonaro e a capilarização do bolsonarismo, os pacientes e usuários assistiram à emergência de caricaturas de jalecos. Antes acostumados com Doctor Rey, passamos a assistir atônicos médicos e mais médicos promovendo-se em redes sociais com tratamentos miraculosos e “dicas” imperdíveis, sempre com uma propagandinha. O lobby de empresas farmacêuticas em consultórios e postos de saúde transformou-se em propaganda barata no Instagram.  Com a pandemia de Covid-19, a coisa piorou. Passamos a ver médicos defendendo tratamentos miraculosos contra Covid-19 em lives e afins. Surgiu até médico receitando qualquer coisa para que pacientes prediletos da extrema-direita ficassem desobrigados a usar máscaras em aeroportos. Mas não podemos esquecer os médicos contrários à “vacina chinesa”, hoje aos montes em redes sociais e na mídia de direita em rádios e canais de Youtube.

Mas esses caricatos são fáceis de perceber o charlatanismo. A questão são os difíceis. Quem são? São aqueles que aparentam a normalidade de um rostinho branco de filhinho de papai que estamos tão acostumados a ver nas fotos de formatura, popularizados com as redes sociais. São aqueles que possuem cabelos brancos lisos, dando-lhes ares de experiência e sabedoria, tal qual em filmes de hollywood. São aqueles que até já perderam os cabelos, mas botam uns belos óculos para dar aquele ar de seriedade.

Para o negacionismo foi um pequeno passo. Imersos no bolsonarismo, compraram o discurso bolsonarista sobre a cloroquina. Pulularam casos e mais casos de médicos recomendando em suas redes sociais e em programas de rádio, TV e de Youtube tratamento precoce da cloroquina. E, em outro pequeno passo, o Conselho Federal de Medicina publicou a seguinte pérola em protocolo: uso da cloroquina conforme autonomia do médico em três situações: 1) pacientes com sintomas leves, em início de quadro clínico e com diagnóstico confirmado; 2) pacientes com sintomas importantes, com ou sem recomendação de internação; 3) pacientes críticos na UTI com uso de ventilação mecânica. Traduzindo, em todos os casos!

Em setembro, com os resultados das pesquisas confirmando o que já indicavam em abril, quando o protocolo foi produzido, o Conselho Federal de Medicina se recusou a revê-lo, confirmando o que todos sabiam: o parecer do Conselho foi feito para atender a interesses políticos do governo federal e de sua base conservadora. E assim estamos até hoje, janeiro de 2021. Nem mesmo a notícia de 22 de dezembro, publicada no Le Monde, de que os médicos franceses que recomendaram a cloroquina serão processados pelo Conselho Federal de Medicina Francês por charlatanismo, fez o Conselho brasileiro mudar de posição. Devemos completar a dedução: o Conselho Federal de Medicina brasileiro é charlatão, ou, ao menos, seria se fosse julgado pelo parente francês. Continua com um protocolo permitindo que médicos receitem cloroquina, quando comprovadamente o seu uso não tem influência positiva (eficácia), mas possui uma gama de consequências negativas.

Lembremos do artigo 283º do Código Penal: é crime de curandeirismo “inculcar ou anunciar cura por meio secreto ou infalível”. Receitar cloroquina inculca uma cura por meio secreto da mesma forma que os feijões do pastor Valdomiro. Mas essa espécie de charlatanismo não deveria nos surpreender, pois a autorização e legitimação legal do ato médico sobre a cloroquina revela uma espécie de privilégio de classe e de raça. Historicamente o candomblé, que nunca propôs cura em substituição à ciência, não obteve a mesma complacência. A surpresa dos desavisados se dá por uma confusão simples: médico não é cientista. O contrário está entranhado no senso comum. Médico é apenas uma profissão, nada mais. Da mesma forma que engenheiro elétrico não está necessariamente habilitado a discorrer cientificamente sobre as minudências moleculares da eletricidade, ou um professor não está necessariamente habilitado a discorrer cientificamente sobre a psicogênese da escrita, um médico não está necessariamente habilitado a discorrer cientificamente sobre a propagação, transmissibilidade e a ação de um vírus. Confundimos status profissional com domínio científico apurado. Domínio cientifico apurado é com o cientista mesmo. Com engenheiros, professores e médicos, espera-se que tomem boas decisões práticas amparadas pelo conhecimento cientifico ministrado na graduação, o que já está de bom tamanho. Portanto, sobre o vírus, é melhor um cientista que estuda sistematicamente vírus, seja ele médico de formação, seja biólogo ou o que for, desde que validado pela comunidade cientifica. Em suma, médico é apenas um diplomado habilitado a exercer uma profissão regulamentada.

É assustador o status que o médico possui para falar toda e qualquer ordem de barbaridades, contrapondo-se a cientistas e sendo usados por veículos negacionistas para fazer propaganda a Bolsonaro. Lógico que isso está relacionado com o status econômico e social da classe que ocupa essa profissão, aproximadamente como aquela frase que usamos com juízes e afins: “pensa que é Deus”. Não é uma profissão popular, é uma profissão da classe média; e o Conselho está aí para fazer valer essa regra. Quando um professor da Escola de Saúde, da prestigiada Santa Casa de São Paulo, ministrou uma aula para os seus alunos com uma máscara preta, a fim de “imitar” um paciente do SUS, fazendo uma voz caricata e trejeitando a fala, deve-se constatar que essa visão sobre o povo brasileiro é predominante entre os médicos, caso contrário ele não faria. Parte do atendimento grosseiro que é costumeiro a muitos médicos no SUS deve-se à falta de estruturas, sem dúvidas, mas também à tipificação, esteriotipação e racialização que a classe social que ocupa a classe profissional faz da classe social que atende. Em sua defesa, o médico-professor, que no caso deve ser pesquisador, disse que não sabia que era um ato racista. Se assim o for, evidencia-se o descolamento da classe profissional (e da classe social) ante o povo brasileiro, o que não deixa de ser racismo, afinal a ignorância não é uma benção. E lógico, os médicos pertencem a um segmento social da classe média tão específico que todos parecem saídos de uma máquina de produção. Entretanto, a denúncia dos estudantes talvez mostre que isso esteja mudando. Talvez...Vamos ver o futuro...

A nova moda negacionista agora é a dos pediatras. Não é que os pediatras resolveram falar sobre o retorno às aulas? Nada contra, faz parte do exercício democrático, mas não se pode deixar de explicitar que a inserção no debate público se dá por um discurso de autoridade que lhes dá o status de cientistas. Como não o são, cumpre constatar que todo discurso de autoridade esconde um conjunto quase infindável de falácias, como apontou Aristóteles. Vamos a duas delas.

A primeira é a minha predileta, pois é da minha área profissional e científica. Os pediatras (e médicos de uma forma geral) estão batendo em uma tecla: o isolamento afeta a saúde mental das crianças e jovens. Sim, lógico! Ocorre que na Educação há publicações de mais de quarenta anos atestando que ir à escola provoca adoecimento psíquico, tanto em professores quanto em alunos. É um grande consenso científico na área. A escola é um espaço de adoecimento tanto de estudantes quanto de professores. Isso é um dado científico! Contudo, esse dado não permite que defendamos que, para sanar o adoecimento mental que ocorre principalmente no ensino médio, os alunos não compareçam mais às escolas. Entre os prós e contras entre ir e não ir à escola, consideramos que é melhor ir, pois a escola permite a socialização e a ampliação do repertório social do indivíduo. Preferimos atuar na atenuação e mitigação dos fatores de adoecimento e despertencimento do aluno à escola. O despertencimento, por sua vez, é uma das chaves da evasão, que ocorre por múltiplos fatores, quase sempre somatizados em mudanças bruscas na saúde mental do estudante.

Ora, mesmo sabendo que a escola, a instituição, provoca adoecimento e somatização de doenças psíquicas, ninguém defende a desescolarização ou a educação descolarizada – até há gente que a defenda pelo motivo exposto, mas fora do círculo acadêmico e científico. Portanto, o contrário também é verdadeiro: em uma pandemia, deve-se mensurar se ela é um fator contraproducente à escola e ao aluno em sala de aula, na dinâmica de uma sala de aula e de uma escola, assim como os pesquisadores da área de educação fazem com o dado de que a vida institucionalizada da escola provoca dessabores psíquicos em uma parcela significativa dos alunos e professores. Deve-se analisar os condicionantes e os pormenores, como a de pensar se a propagação por meio da escola é um contra menor ao pró de o aluno supostamente não adoecer psiquicamente. Como pensar em educação infantil sem interação? Cada qual ficará em um quadrado desenhado no chão, que quando for desobedecido irá para a direção? Qual é a dinâmica pedagógica? Provavelmente, os pediatras tenham uma ideia de educação baseada em suas próprias escolarizações, apenas, ou nas escolarizações de seus filhos, todos em escolas privadas próximas às “escolas de elite”, aquelas da elite paulistana.

A segunda falácia é o argumento usado por organizações empresariais da educação: se os bares abriram, por que as escolas não abriram? O que dizer desse tipo de pergunta? Os bares não deveriam ter sido abertos. Aliás, se os bares não tivessem sido abertos, seria mais fácil promover o retorno das aulas. Essa polarização moralista, em que objetiva transmitir a ideia de que a sociedade brasileira prefere bares a escolas, reflete outro ponto de contato com o bolsonarismo. Quem a faz pode até brincar de oposição a Bolsonaro, mas não passa de brincadeira de jardim de infância.

Ora, o retorno das aulas nos países que são objetos da imprensa – já que só reportam países da Europa e os EUA – se deu sobre alguns patamares. Basicamente esses patamares foram construídos pela comunidade cientifica internacional, quase todos baseados em um estudo de Harvard: quantidade baixa de contaminados por cada 100 mil habitantes, testes e rastreio de contados efetivos dos contaminados. Ocorre que, justamente pelo boicote bolsonarista e pela liberalização das atividades econômicas não essenciais, não há nenhum dos três instrumentos em exercício. A taxa de contaminados por cada 100 mil habitantes no Brasil é uma das mais altas do planeta; não há testes, o que ainda revela uma imensa subnotificação; e o rastreio é uma piada que nem merece ser comentada: nunca houve. Portanto, estamos cientificamente no escuro. Não sabemos onde estamos e nem para onde vamos. Torcemos para uma vacina porque foi a única coisa que restou.

Qual seria o efeito de propagação aos mais velhos? Por exemplo, em Ribeirão Preto, estado de São Paulo, a pesquisa do comitê responsável pela elaboração de um protocolo sanitário e de rotina escolar constatou que na rede municipal de ensino algo em torno de 35% dos alunos moram com avôs. Seriam 17.500 famílias. Em uma taxa de adoecimento de 10% de pessoas que precisam de intervenção hospitalar, seriam 1.750 famílias. Se contabilizarmos 1,5 para cada família (avo e avó, mas retirando meio ponto para expressar de alguma forma mortes de um do casal), seriam 2.625 pessoas, em uma cidade com pouco menos de 50 leitos públicos de UTI para a macrorregião, contando com o Hospital das Clínicas da USP, hoje com 100% dos leitos para Covid-19 ocupados. A mesma conta fez a Prefeitura Municipal de São Paulo no fim de 2020. Se já há dados que assintomáticos transmitem o vírus, especialmente entre os cuidadores das crianças e jovens, é possível retornar sem planejamento, como se fosse um bar?

Os pediatras tocaram em tais questões? Os pediatras compreendem a dinâmica de uma escola que não seja de elite, como a de seus filhos? Ah, mas a escola privada está aberta e a pública não, promovendo desigualdade, como agora martela a UNICEF, entidade que não se debruça sobre educação. Verdade, mas em um país sério, não seria aberto. Em outro país sério, seriam fechados, como um país com unidade nacional. 

Nem mesmo a posição que relaciona o isolamento ou atividades escolares remotas ao adoecimento é explicitada por estudos. Sabe-se que há uma relação, mas atendimento em consultório pessoal não é lá um procedimento científico digno de ser um resultado de pesquisa. No máximo, é uma impressão pessoal – espera-se que embasado, ao menos – sobre um público restrito, provavelmente de perfil econômico próximo ao perfil dos pediatras. Não há isolamento de variáveis, entrevistas, não há nada sistematizado, tampouco ampliado para o conjunto da população levando em consideração outros fatores, como a própria desigualdade econômica. Estamos assistindo a uma nova onda de novos Osmares Terras. Um cabedal de bobagem negacionista, tal qual a cloroquina. Pode ser mais vistosa e bonitinha, mas é uma cloroquina 2.0. Mas há apenas um lado positivo e negativo em tudo isso. O lado positivo é que a atuação do Conselho Federal de Medicina e dos médicos-influencers sobre a pandemia serviu para a desmistificação da classe médica; o lado negativo é que a desmistificação ocorreu por meio da propagação do negacionismo, que venceu sobre os médicos não negacionistas e a comunidade científica.

As pesquisas mais recentes sobre as experiências de abertura de escolas no Reino Unido concluem que elas foram uma das principais responsáveis pelo aumento das contaminações.  As escolas, abertas em novembro, foram o segundo maior responsável por novos surtos, ficando à frente de hospitais, fábricas e escritórios. Portanto, o único estudo estatístico que existe correlacionando ambientes com contaminados, por meio do rastreio de contatos, com um exemplo usado pelos pediatras negacionistas, atesta que a escola foi um fator desencadeador de propagação da Covid-19, inclusive da nova mutação, que se propaga com mais facilidade e já está no Brasil.

Não há ninguém que discorde da necessidade e importância de retorno das atividades presenciais da escola. Mas o retorno, segundo patamares defendidos pelos países que se tornam exemplos na boca dos próprios pediatras (não cientistas), quando dizem que quase todos os países retornaram as atividades, nem que seja por pouco tempo, ocorreu politicamente sobre patamares científicos. Portanto, baixo índice de contaminados a cada 100 mil habitantes, testes e rastreio de contatos efetivos dos contaminados. O resto é balela! Quando saiu do controle, suspenderam, como acabou de fazer a Alemanha e o Reino Unido. Mas, para isso, alguém precisa considerar que saiu do controle. Aqui no Brasil, não há uma viva alma da política brasileira que tenha a coragem de fazer publicamente essa constatação. O retorno das atividades presenciais das escolas no Brasil está se dando politicamente sobre patamares obscurantistas e negacionistas, logo, anticientíficos. Essa é mais uma prova que Bolsonaro venceu! E tem os seus “médicos” para fazer o serviço, desta vez ao lado dos governadores e prefeitos que fingem alguma oposição à vitória de Bolsonaro.

                                                                                                                 

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