Galdino e Ferrer: como funciona a justiça da classe dominante



O caso da Mariana Ferrer não revela somente o machismo e a misoginia do judiciário brasileiro, mas como a justiça vai lidando com tipificações novas para atender a interesses gerais e imediatos de segmentos da classe dominante. Assim, garante a coesão da classe dominante.


Para atender a tais interesses, a justiça vai criando tipificações novas, assim como vai modelando as tipificações. Por exemplo, cria uma nova tipificação, “estupro culposo” (criado pelo The Intercept), para reverter o impacto da quantidade de provas, ao passo que quando para jovens pobres e pretos, uma foto no facebook é o suficiente (esse é um dos muitos motivos que não tiro fotos. Até tenho tirados por outros, mas pretendo excluí-los).


Houve um caso bastante emblemático na década de 1990 que ajuda a entender o que aconteceu: o do pataxó Galdino, queimado vivo por cinco brancos da classe média tradicional brasiliense. Os quatro maiores de idade, hoje servidores públicos, foram condenados em decisão do STJ. Dos quatro, um é filho de Coronel da PM da DF Eronivaldo José de Oliveira da Silva; outro, filho do Desembargador Federal Novély Vilanova.


O julgamento do STJ foi um julgamento corretivo sobre a primeira instância, o que provavelmente deve acontecer no caso de Mariana Ferrer (ocorre nos casos de grande repercussão quando o julgamento da primeira instância reproduz o que normalmente faz em todos os casos com atores semelhantes).


De início, a primeira instância foi dirigida por uma juíza. A juíza Sandra de Santis, esposa do ministro Marco Aurélio, expressou em duas “situações” afinidade com a defesa, ao menos: em uma das “situações” a juíza chamava os acusados de “crianças”. Indagava às “crianças” sobre o colégio, as namoradas, humanizando-os. Em um determinado momento, quando percebe que Max Rogério estava chorando, interrompe-o com um “pode chorar, homem também chora”.


Em contrapartida, ficou à época patente a indiferença com que tratava o choro da mãe de Galdino. Quando a mãe de um dos acusados chorou, a juíza, segundo a promotoria da época e testemunhas, chorou junto. A defesa conseguiu o que queria: ao invés de homicídio, a juíza os tipificou em crime de lesão corporal seguida de morte, livrando-os do júri popular.


Ibaneis Rocha, o advogado de defesa, hoje é o governador do Distrito Federal, não sem ter passado pela presidência da OAB-DF.


O que quero dizer sobre tudo isso? O caso de Mariana Ferrer foi flagrantemente um caso de misoginia pura. Mas a misoginia não explica tudo. A criação de tipificações e flexibilização das provas é algo comum a trabalhadores negros e pobres, em que a foto do facebook e o testemunho do policial valem mais do que um vídeo com a sua imagem no mesmo horário no outro lado da cidade mais cinco testemunhas e o ponto de trabalho. Alguns de vocês devem estar vendo isso pela primeira vez, ou até já viu, mas pouquíssimas vezes por meio de reportagens e afins. Nunca viu com alguém próximo. Se esse é o caso, isso significa que você vive bem, com uma dada noção de liberdade e direitos que não corresponde com a noção de liberdade e direitos da maioria da população brasileira. Talvez por isso esteja revoltada. Mas sempre foi assim. 


A juíza se solidarizou com os acusados porque se reconhece socialmente e economicamente mais com eles do que com a vítima, a sua mãe e os seus três filhos. O nome disso é posição de classe, no caso literalmente estabelecidas pelo lugar de classe e a correspondência com a situação de classe. Sobre o caso da vítima de estupro, é preciso entender que estamos a falar não somente de homens, mas de famílias que se relacionam economicamente, politicamente, socialmente e simbolicamente em um estado, ou melhor, em uma cidade, da mesma forma que a juíza para com as famílias dos acusados, especialmente a do coronel e a do desembargador. Podem até não se conhecerem pessoalmente, mas são membros da mesma classe, do mesmo segmento social. Possuem a mesma posição de classe, os mesmos códigos e símbolos, o mesmo capital social.


E essa é a forma pela qual o judiciário assume a posição de classe da classe dominante aparentando relativa autonomia. Defende interesses imediatos de alguns segmentos e os corrige pontualmente, como aconteceu com Galdino, mas não os corrige em 99% dos casos. O caso dela assumiu vulto social, repercussão negativa ao judiciário, que provavelmente o corrigirá, expelindo a sua “autonomia” à opinião pública, mas uns tantos outros passaram e passarão batidos para acolher a sanha dos interesses imediatos da classe dominante, atendendo, assim, a noção geral de liberdade e igualdade da classe dominante, em que a igualdade é para os seus. Sim, liberalismo não garante igualdade a todos, somente aos seus. Por isso que racismo é uma produção cara aos liberais, garante espaços estratégicos de reprodução econômica privilegiados, sem ampla concorrência, dando-lhes mais garantias de reprodução. Losurdo trata bem dessa questão em Contra-história do Liberalismo.


Se você está assustada com o que aconteceu, devo dizer que é assim mesmo com os trabalhadores pobres, nativos e negros, todos os dias, especialmente as trabalhadoras negras (que muitas vezes nem audiência tem). Caberia agora uma discussão sobre qual judiciário poderíamos ter. Preferiria elencar exemplos da Comuna de Paris e da Revolução Haitiana. Mas seja lá o que for, a luta imediata do povo é simplesmente destruir esse judiciário. Se vier com republicanismo e reformismo, a bem da verdade só quer resolver o problema específico que lhe pode acometer, nada mais. A tipificação de novos crimes e a flexibilização de provas correm soltas no judiciário, como demonstrou a Lava Jato que, talvez, você possa ter apoiado. Quem não se lembra do “domínio do fato”, criado pelo “negro de valor”, como disse Roberto Barroso, o autoproclamado iluminista que prende a torto e a direito e é árduo defensor da prisão em segunda instância?


Ah, mas a Lava Jato prendia, e eu quero justamente que o estuprador seja preso. Não! A questão é que o judiciário inventa novas tipificações para culpar e prender os indejados, de pobres e negros a adversários políticos, assim como para livrar os desejados, do estuprador aos assassinados e sonegadores das elites brasileiras.

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