Um pequeno manual político-teológico para entender o neopentecostalismo contemporâneo e a sua relação com o neoliberalismo (Parte I)
Parte adaptada de O nascimento de uma nação: como o liberalismo produziu o protofascismo brasileiro, material do curso Estudos críticos sobre o conservadorismo brasileiro, oferecido pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP).
Por Leonardo Sacramento
Habitualmente, os evangélicos são um
ponto de incompreensão em movimentos sociais, acadêmicos, partidos e imprensa.
A falta de compreensão deve-se a uma falsa historicidade, em que se compara
neopentecostais brasileiros com protestantes e calvinistas europeus a partir de
uma história das ideias que segue um método comparativo. Ocorre que os
processos políticos entre protestantes europeus e neopentecostais brasileiros
são completamente distintos.
Para entender os neopentecostais
brasileiros, é preciso compreender como o neopentecostalismo se estruturou e se
amalgamou nas relações sociais brasileiras. A chave para a compreensão do
movimento neopentecostal é a elucidação da função social do movimento enquanto
instrumento político, e a forma pela qual a sua teologia se consolida como
instrumento de regulação de uma dada sociabilidade nas relações de produção do
capitalismo brasileiro. E a regulação, segundo dados e pesquisas, está nas
noções de desigualdade e mérito, coadunadas com o neoliberalismo.
A pesquisa da Oxfam Brasil em
conjunto com o Datafolha, publicada nos meios de comunicação em
maio de 2019, constatou que o brasileiro acredita que a desigualdade é um
empecilho ao progresso do país. Contudo, a causa primeira para superar a
desigualdade seria o combate à corrupção, assemelhando-se à perspectiva
udenista da mídia e dos conservadores, em que a corrupção seria o começo, o
meio e o fim de todos os problemas sociais, reduzindo os problemas e a
complexidade brasileiras a uma matriz analítica monocausal.
Esse empobrecimento analítico é um
instrumento importante para a manutenção conservadora das relações de produção
e das mobilidades como estão estruturadas e institucionalizadas. Longe de ser a
estrutura tributária, a exploração, o trabalho e a transferência de renda de
trabalho para rendas de capital, por exemplo, a corrupção remete à população a
crença da tirania do status quo freedmaniano (Milton
Freedman), na qual a corrupção viria necessariamente e exclusivamente do
Estado. A solução seria a sua imediata redução ou até mesmo a sua extinção. Não
à toa, e muito menos por coincidência, em último lugar na pesquisa como medida
prioritária está o investimento em assistência social.
Mas o que poderia levar à melhoria da
vida das pessoas? Em primeiro lugar, segundo a pesquisa, a fé religiosa,
seguida de estudos. Em antepenúltimo, em oito requisitos pré-definidos, está o
acesso à aposentadoria.[1] Esses
dados corroboram uma pesquisa feita pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e
Inovação intitulada Percepção pública da C&T no Brasil – 2019.
A pesquisa analisa a percepção da população sobre a imagem da ciência e do
cientista. Em 2015 a mesma pesquisa constatou que 19% das pessoas enxergavam
malefícios à ciência; já em 2019 saltou para 42%. Outro dado relevante é que o
percentual de pessoas que consideram cientistas pessoas que servem a interesses
econômicos e produzem conhecimento em áreas nem sempre desejáveis saltou de 7%
para 11% nas mesmas datas, sendo que chegou a ser 5% em 2010. Já o percentual
de pessoas que consideram cientistas produtores de conhecimentos úteis à
humanidade caiu de 52% para 41% nas mesmas datas, sendo que em 2010 estava em
55,5%.
A percepção de que é possível romper a
pobreza por meio da fé religiosa prosperou como nunca neste século, notadamente
sob os governos petistas, sem dúvida alguma. Um dos equívocos nas análises
sobre conservadorismo contemporâneo, além de não o analisar historicamente,
dando a entender que surgiu de forma espontânea ou maquiavélica a partir de uma
intervenção predominantemente estrangeira (sem desmerecer a importância da
atuação dos EUA), consiste em posicionar as igrejas neopentecostais a um
lugar-comum do simples e mero fundamentalismo. Essa é uma perspectiva que tem o
objetivo de não reconhecer o óbvio: as alianças da esquerda com grupos sociais
conservadores cujas histórias estão inscritas em todos os golpes institucionais
ao longo dos séculos XIX e XX foram fundamentais à ascensão conservadora. Dos
militares aos religiosos, dos financistas à FIESP, de emissoras a setores da
classe média tradicional.
Mas foquemos no neopentecostalismo, um
novo protagonista dos grupos socialmente conservadores. Se o empreendedorismo é
o projeto político do neoliberalismo para a classe trabalhadora, não há nenhuma
outra organização que realiza melhor esse projeto de poder do que as igrejas
neopentecostais. Ela substituiu os sindicatos. Por isso, é preciso compreender
a sua principal teologia, a Teologia da Prosperidade.
A Teologia da Prosperidade não foi
construída à luz do corolário neoliberal, o que não significa que não se
vincule ontologicamente ao neoliberalismo. Hoje vincula-se como um belo
casamento cristão. O nascimento da Teologia da Prosperidade remonta a Essek
William Kenyon e de seu seguidor Kenneth Hagin, que criaram a Confissão
Positiva a partir do Evangelho Segundo São Marcos 11:23-24, o qual permitiu a
interpretação de que a fé é a base da Confissão Positiva.
Para entender a Teologia da
Prosperidade, é preciso discorrer um pouco sobre a Confissão Positiva. Em um
país católico como o Brasil, é plenamente razoável que boa parte da população
tenha passado por um confessionário, ou se não, que tenha em mente a confissão
católica por meio de filmes e novelas. No confessionário, o pecador discorre
sobre os seus pecados, e por serem pecados, por óbvio são negativos. Pode-se
dizer que essa é uma confissão negativa, segundo os preceitos de parte
significativa do neopentecostalismo. A confissão positiva decorre da
constatação de que qualquer sofrimento expressa falta de fé, em que se traz à
existência o que se testemunha positivamente, na medida em que a confissão é um
ato de fé. Sendo assim, a característica do bom cristão é o sucesso, enquanto
que a pobreza e o fracasso são as faces da falta de fé, pois o testemunho do
positivo é a base para a negação do indesejado.
A descrição de Paulo Romero, então
diretor do Instituto Cristão de Pesquisas (ICP), uma espécie de
organização com perfil acadêmico-teológico que objetiva a realização de
pesquisas na perspectiva evangélica, sintetiza conceitualmente a Confissão
Positiva e a sua relação com a Teologia da Prosperidade:
Conhecido
popularmente como a “teologia da prosperidade”, esta corrente doutrinária
ensina que qualquer sofrimento do cristão indica falta de fé. Assim, a marca do
cristão cheio de fé e bem-sucedido é a plena saúde física, emocional e
espiritual, além da prosperidade material. Pobreza e doença são resultados
visíveis do fracasso do cristão que vive em pecado ou que possui fé
insuficiente (ROMERO, 1993, p. 5).
Em
seu livro Suprecrentes: o evangelho segundo Kenneth Hagin,
ValniceMilhomens e os profetas da prosperidade, Paulo Romero reconstrói a
importância de Kenneth Hagin para a construção teológica da Confissão Positiva,[2] não sem
apontar algumas abstrações sintetizadoras que conseguiu estabelecer, tais como
a que boa parte do movimento da prosperidade declara que a enfermidade advém do
Diabo (ROMERO, 1993, p. 33), que os verbos “pedir, rogar e suplicar” foram
substituídos por “exigir, decretar, determinar e reivindicar” (ROMERO, 1993, p.
36), e que Deus é representado na prosperidade.
No
livro New Thresholdsof Faith, Hagin enuncia o raciocínio que
fundamentaria a Teologia da Prosperidade. Diz Hagin (1990, p. 55):
Cristo nos redimiu da maldição
da pobreza. Ele nos redimiu da maldição da doença. Ele nos redimiu da maldição
da morte – morte espiritual agora e morte física quando Jesus voltar. Não
precisamos ter medo da segunda morte.
(...) A Escritura do Novo Testamento, terceiro João 2, concorda
que Deus deseja que tenhamos prosperidade material, física e espiritual, porque
diz: "Amado, desejo acima de tudo que você possa prosperar e ter saúde,
assim como a sua alma". Muitas pessoas têm a impressão de que qualquer
promessa na Bíblia de bênção e prosperidade material se refere apenas aos
judeus. No entanto, este versículo foi escrito para os cristãos do Novo
Testamento.
Hagin termina a lição com a seguinte
afirmação, usada também por Romero (1993): “Deus quer que Seus filhos comam melhor, Ele quer que eles
usem as melhores roupas; Ele quer que eles dirijam os melhores carros; Ele quer
que eles tenham o melhor de tudo” (HAVIN, 1990, p. 55).
Primeiramente, é um equívoco afirmar
que os pastores a priori possuem simplesmente má-fé, pois a construção
teológica consiste na edificação do ato de fé em oposição à maldição. Essa
construção permite que a Teologia da Prosperidade seja extremamente mundana,
pois dialoga abertamente com os problemas e as vicissitudes do cotidiano. Em
outras palavras, é uma construção de um projeto de sociabilidade que tem um
projeto de poder para os trabalhadores mais efetivo do que a Encíclica Mater
et Magistra, tão difundida que foi defendida
ardorosamente por Patrus Ananias e Júlio de Mesquita Filho em momentos
históricos e campos políticos distintos, a qual estabelece que burguesia e
trabalhadores devem viver em regime de solidariedade em que a propriedade
privada é um direito natural pertencente à burguesia que deve ser exercido para
o bem de todos; ou mesmos dos sermões de Antônio Vieira para escravizados, em
que o martírio consistiria na chegada imediata ao paraíso. É mais efetiva
porque viabiliza ideologicamente a saída dos trabalhadores da classe que sofre e
dá uma alternativa existencial ao martírio referindo-se ao acesso
historicamente negado aos mecanismos das mobilidades econômica e simbólica. A
ideia de que Jesus sofreu pelo humano, não cabendo mais ao humano sofrer,
expressa rigorosamente as agruras e os desejos dos trabalhadores submetidos à
extrema exploração.
Hagin
se fundamenta em Marcos 11:23 para dissociar o dizer do orar. Essa é uma
dissociação importante que é seguida por boa parte das igrejas neopentecostais.
Seguiremos rigorosamente o raciocínio do pastor em A fé para remover
montanhas, especialmente no capítulo 6, A fé para finanças, só com uma
palavra. A palavra é a expressão, o meio e o fim da Confissão Positiva.
Em
Marcos 11:23, na obra
de Hagin, está: “Porque na
verdade nos digo que qualquer que disser a este monte: Ergue-te e lança-te no
mar, e não duvidar em seu coração, mas crer que fará aquilo que diz, tudo o que
disser lhe será feito”. Hagin faz uma dissociação entre dizer e orar, especialmente
no capítulo 5, em que conclui que crer não é o suficiente. Assim sendo, o
crente deve falar, apalavrar, emitir o verbo a Deus, especificando o que
deseja. Continua Hagin (s.d., p. 98), “quando você crê fortemente que Deus lhe
dará alguma coisa, não a receberá necessariamente por isso. Jesus não disse:
‘... tudo o que crer lhe será feito’, mas: tudo o que DISSER lhe será
feito” (grifos e caixa alta do autor).
O
que for dito deve ser sempre positivo, seja um pedido ou um testemunho. Hagin
(s.d., p. 100) recomenda que não se dê mau testemunho, uma vez que o “crente
não deve ser traficante de dúvidas, assim como não deve ser traficante de
drogas”. As dúvidas, por mais que não sejam crimes, “não deixam de ser
pecaminosas”. A dúvida aqui é transformada em pecado, ou algo que pode levar ao
pecado. O que há, ironicamente à reforma de Martinho Lutero, é a reafirmação do dogma
cristão e o protagonismo da figura do pastor e de sua capacidade de interpretação, como a
dissociação feita entre dizer e orar, o que é rechaçado por Romero através da
elucidação do eterno problema da tradução.[1] Não basta orar, mas falar que a recebeu. Portanto,
é preciso testemunhar, realizar a confissão da fé, “e não à confissão do
pecado”, que “deve ser esquecido, assim como Deus o esquece” (HAGIN. s.d., p.
107).
A
quem assiste pela televisão os cultos ou simplesmente nota os colantes nos
carros com os dizeres “Pertence a Deus”, “Presente de Deus”, “Nas mãos e nas
palavras de Deus”, “Foi Deus que me deu”, entre outros, observa um testemunho
tão ou mais importante do que a oração, testemunha um rito da fé, como os War boys de Mad Max: estrada da
fúria, que antes de fazerem o ato mais alto da vida, dá-la, precisam oferecer o
testemunho aos colegas sob o risco de não entrar em Valhalla.
Em seguida Hagin apresenta fatos
pessoais como prova da Confissão Positiva baseada em Marcos 11:23:
Certa vez, há muitos anos,
precisava de $1.500 até ao início do mês. Disse, portanto: “Antes do dia
primeiro do mês que vem, terei $1.500”.
Continuava dizendo assim, em várias
ocasiões, na oração. Só repetia a mesma afirmação: “Antes do dia primeiro do
mês de que vem, terei $1.500”. Pois bem, chegada aquela data, eu tinha $1.580 –
oitenta dólares mais do que reivindicara!
Foi o Senhor quem me ensinou como aplicar a
minha fé às finanças. Levei anos para perceber o fato. Como moço batista, tinha
sido salvo, e depois curado pelo poder de Deus. Mas nunca pensei em usar a
minha fé além da salvação e da cura (HAGIN, s.d., p. 108).
Hagin
teria tido muitas complicações em sua infância e teria sido curado por
intervenções divinas. Segundo o pastor norte-americano, em um determinado
momento em sua vida, Deus havia lhe falado:
A fé é a
mesma em todos os âmbitos e em todas as áreas. Mas você emprega a fé somente em
se tratando da salvação, do batismo no Espírito Santo, e da cura divida. Mas a
fé é a mesma também na área financeira.
(...)
Se você
precisasse da cura para seu próprio corpo, você a reivindicaria pela fé, sairia
para proclamar publicamente que você foi curado, e continuaria suas pregações.
E, muitas vezes, no passado, todos os sintomas desapareceriam enquanto você
pregava.
Você
precisa fazer a mesma coisa quando se trata das finanças (HAGIN, s.d., p. 111).
Independentemente
da matriz teológica, o fato é que a Teologia da Prosperidade faz uma divisão
nítida e explicita. Ricos e pobres sempre existiram e sempre existirão. Ricos
são bem-aventurados porque possuem a fé, e foram agraciados da mesma forma que
seriam se fosse uma enfermidade. Miseráveis e enfermos vivem sem fé, e só podem
mudar de vida se e somente se se submeterem ao império da fé cristã por meio da
Confissão Positiva. Nesse sentido, a maldição é um elemento fundamental da
construção da fé.
A visão que parte das igrejas neopentecostais possui das religiões de matriz africana advém da ideia de que seus praticantes estão distantes da fé, portanto, em situação de amaldiçoamento. Da mesma forma, são religiões decorrem do continente africano, onde sobreviveria a maldição sobre Cam, como defendeu e defende o Pastor e deputado Marco Feliciano.[2] A mesma visão racializada é verificada por estudos sobre a visão das igrejas neopentecostais sobre as religiões de matriz africana, em que são acusadas de serem espaços ideais para a propagação de possessões demoníacas.
Há a criação
de um inimigo comum que unificaria os cristãos brasileiros, como atesta Mãe-de-santo, publicado em 1968 por Walter Robert
McAlister, fundador da
Igreja Pentecostal de Nova Vida no Rio de Janeiro, e Orixás,
caboclos & guias. Deuses ou demônios?, de Edir Macedo,
fundador da Igreja Universal do Reino de Deus.[3] A exportação de
igrejas neopentecostais ao continente africano não é mera coincidência, mas um
elemento de um projeto político-teológico que enxerga o continente africano, o
africano e o negro como elementos propícios à possessão demoníaca, em que a fé
livraria todos do amaldiçoamento e se transformaria em exemplo da universalidade
da fé neopentecostal.[4]
Tanto na África quanto no Brasil, as
igrejas aplicam uma certa pedagogia do empreendedorismo, termo usado pela
Professora Camila Sampaio, da Universidade Federal do Maranhão, ao discorrer
sobre as revoltas contra a Igreja Universal do Reino de Deus em São Tomé em
Príncipe em reportagem intitulada Revolta contra Igreja Universal gera morte e
crise diplomática no continente africano, publicada em 04 de novembro de 2019 pela BBC
News Brasil. Vamos entender o modelo criado no Brasil e o exportado, pois ele
responde em boa medida pela ascensão do conservadorismo entre os trabalhadores.
Primeiramente, a pobreza é uma
resultante da falta de fé. Diante desse fato, faz sentido as igrejas
neopentecostais construírem alguma tecnologia para o enriquecimento para além
do Dizer. Em um contexto de ascensão da autoajuda e do empreendedorismo, não é
muito difícil irmanar o útil ao agradável na Teologia da Prosperidade.
A Igreja Universal do Reino de Deus
tem uma sessão específica em seu jornal, Folha Universal – publicada periodicamente desde
1992 –, chamada Sucesso Financeiro. Na edição de 17 de
novembro de 2019, a empresária Pamela Rivelles, que era empregada – na seção
cujo título é “De desempregada à empresária” – afirma que “escutava a Palavra e
pensava que não poderia continuar pensando pequeno”, que ela “tinha ter
algo que glorificasse a Deus” (grifo meu).
A
tecnologia desenvolvida pela igreja chama-se Fé Inteligente. A partir das
leituras, é de difícil conceituação. O desapego à exatidão tem o ponto positivo
de explicar o fracasso, pois sempre existirá algo que não foi feito por aquele que
não foi agraciado com dinheiro. Para Edir Macedo, fé não é sentir, exacerbar a
emoção em um show, pois “é possível ver vários
exemplos de que a fé bíblica não tem nada a ver com sentimentos ou emoções”.
Para o pastor, tais demonstrações de fé devem “ser descartadas, pois o que vale
é a certeza na Palavra do Altíssimo”.
O Bispo
acrescenta que esse é o motivo da vida de muitas pessoas que creem em Jesus ser
devastada pelos fracassos. O problema está, justamente, na forma como conduzem
sua fé e o relacionamento com o Altíssimo.
Enquanto estão na igreja,
ficam felizes, pois, aparentemente, sentem a presença de Deus. Mas, quando
estão fora, sozinhas, caem em desespero porque só sentem os problemas e as
tribulações.
“Por isso, não basta vir à
igreja, você deve manter essa chama acessa, crer que Ele é com você. Essa fé é
que faz a diferença e lhe sustenta. O mal não tem poder sobre a pessoa que
carrega a certeza de que Deus é com ela”, ensinou.[5]
O
fracasso daqueles que visivelmente possuem fé está explicado por uma
conceituação heterodoxa e abstrata sobre o que é a expressão da fé, em que o
fracassado sempre pode ser convencido de que fez ou não fez algo que explica o
seu suposto fracasso. Por óbvio, os casos anunciados na Folha Universal são os de sucesso, unindo o
corolário da Confissão Positiva com a necessidade do marketing.
A
Fé Inteligente pressupõe o que chama de a Aliança com Deus, segundo a qual nada
mais é do que uma sociabilidade ascética à luz da interpretação pentecostal e
neopentecostal. Segundo a edição de 10 de novembro de 2019 da Folha Universal, é baseada em sete pontos: 1)
decidir entregar a vida a Deus; 2) cultivar disposição para pautar a sua vida
na Palavra de Deus; 3) obediência à Palavra de Deus; 4) abandonar os antigos
hábitos; 5) fortalecer a fé diariamente; 6) confiar em Deus em todos os
“desafios”; e 7) praticar a fé inteligente.[6]
Como
dito, não há uma explicação formal e conceitual do que é Fé Inteligente. Normalmente, inclusive pelos
inúmeros vídeos disponíveis, há mais exemplos do que conceituação clara e
formal, a despeito do argumento de Edir Macedo sobre a polarização entre razão
e emoção no âmbito da fé. Vamos ao exemplo da matéria em questão.
Um
casal detentor de uma empresa de segurosteria voltado a atrair clientes após um
período de crise, com o fechamento de um contrato com um condomínio e a atuação
ativa da esposa, que estava conseguindo clientes em sua área de atuação, a advocacia.
Ambos creditam a mudança ao uso da Fé Inteligente. Diz o marido: “Deus se
manifestou a partir de nossas atitudes. Ela começou a se mover e já estão
aparecendo clientes”. O semanário afirma “as conquistas que ele e a esposa
tiveram neste ano estão relacionadas à prática da Fé inteligente”. Marcos
confirma, assegurando que a visão dele mudou, já que “o Espírito Santo está
comigo me dando direção”.
O
Bispo Allan Sena relata a importância da Fé Inteligente, e que a fé por si não
é fator suficiente para obter o sucesso financeiro tampouco o esforço no
trabalho, para os quais “o problema não é a falta de Fé”, mas o uso “de uma
maneira inteligente e prática”. Em suma, a “Aliança com Deus tem seus deveres e
compromissos que devem ser obedecidos e é isso que ensinamos nas reuniões”, a
partir das seguintes etapas:
Em primeiro lugar, a Fé nos ensina a acreditar em nossa própria
capacidade. E, em segundo lugar, ela nos faz crer sobretudo em um Deus vivo que
é maior do que toda má situação vivida. Por isso que, ainda que os problemas
que enfrentamos sejam maiores do que a capacidade humana, sabemos que Deus tudo
pode e tudo consegue.
“Acreditar
em nossa própria capacidade” é um libelo da autoajuda e das pseudoteorias do
poder da mente. A reportagem seguinte,
pertencente à sessão Sucesso Financeiro,apresentada
após a reportagem de capa convidar a todos que desejam “firmar” um pacto com
Deus a comparecerem a uma igreja, possui o singelo e surrado título de escolas
empreendedorismo e coachingMais que a
obrigação. O texto defende a ideia de que para que o indivíduo cresça no
trabalho é preciso que possua uma postura que vá além da obrigação contratual.
Para reforçar a ideia, usam a história de Greg Rogers, que teria criado uma
bebida que aumentou o faturamento da rede Starbucks, e o pensamento de
dois professores da Universidade da Carolina do Norte e de NotreDame, Thomas
Bateman e J. Michael Crant.
Depois
das citações dos professores, cujo lugar-comum é o do empreendedorismo mais
barato, como “o que faz mais que a obrigação promove reformas construtivas; o
que não faz segue o fluxo passivamente no piloto automático”, o texto afirma
que a Bíblia confirma tais ensinamentos com a seguinte passagem de Mateus
25.14-30:
Nela,
há a história de três servos que recebem de seu senhor – que ia viajar –,
respectivamente, um, três e cinco talentos (moeda da época) para guardarem. Os
dois receberam três e cinco talentos dobraram a quantia com aplicações. O que
recebeu um, com medo de perdê-lo, escondeu-o e não teve nenhum rendimento. Esse
foi rejeitado pelo patrão quando ele voltou de viagem, enquanto os outros dois
receberam privilégios e evoluíram no trabalho.
O
Senhor Jesus dá novamente na Bíblia não só um conselho sobre como reagir diante
das adversidades, mas sobre a importância de se esforçar para obter êxito: “E,
se qualquer te obrigar a caminha uma milha, vai com ele duas” (Mateus, 5.41).
E
chegamos à conclusão:
Quem
faz algo passivamente, só por ter obrigação, cumpre a primeira milha como todos
e não consegue se destacar no meio da multidão que disputa um espaço, mas é na
segunda milha que quem tem mais a oferecer sobressai.
Como visto, a teologia transformou-se em coaching
ou fomentador da disputa entre trabalhadores no mundo do trabalho, em que uns
chegam à segunda milha e são agraciados com bens materiais enquanto a maioria
não passa da primeira milha. Lógico que no exemplo dos talentos, moeda da
época, caberia um questionamento sobre a distribuição desigual assim como sobre
o fato de ser mais fácil se desfazer de um talento quando se tem três do que
quando se tem um, mas a narrativa bíblica é encaixada para reforçar a
verborragia da meritocracia e do empreendedorismo, o que faz com que tais
questionamentos pouco importem.
Por
fim, a reportagem indaga: como se destacar da multidão? Segundo a reportagem, há
seis itens que ajudariam a se destacar à luz da Aliança com Deus e da Fé
Inteligente: foco, seja sempre ativo, perceber que alguém sempre repara em quem
se esforça, explorar as qualidades e aprender sobre o trabalho. O último é
destinado aos “empregadores”, a saber, a busca de funcionários com este perfil,
veja só. Portanto, se o trabalhador não tiver esse perfil para um empregador
vinculado à Fé Inteligente, será provavelmente preterido, restando os
trabalhadores embebidos da nova necessidade de fazerem mais do que a obrigação
exige. Com um pouquinho de tino, dá para montar um negócio em que patrão e
trabalhadores possuem o mesmo perfil e objetivo, e por que não, todos evangélicos
e leitores ávidos do Sucesso Financeiro.
A
matéria de capa da edição de 17 de novembro de 2019 da Folha Universal,
na qual o título é Quem usa a fé no altar se torna um realizador de sonhos,
inicia-se com a mesma simbiose entre fé e empreendedorismo nas matérias já
analisas. O Bispo Odivan Pagnocelli faz a seguinte afirmação:
Desde
a infância temos muitos sonhos, mas, à medida que vamos crescendo e nos
tornamos adultos, nossos sonhos também amadurecem. E, se há muitos que dedicam
boa parte da sua vida a alcançá-los, outros se frustram conforme o tempo passa
e os sonhos se tornam cada vez mais distantes. Nos deparamos com vários tipos
de sonhadores: os que têm sonhos e não fazem nada para concretizá-los e os que
desistem no meio do caminho. Somente conseguem realizá-los os que perseveram
até o fim e não se importam com os sacrifícios que terão de fazer para isso.
O bispo lembra que a bíblia possui muitos homens que
sonharam e se destacaram, como Moisés, que teria libertado o seu povo por ter
sonhado e se sacrificado. Por conseguinte, “com a força do braço, o sonho está
sujeito a todas as fragilidades terrenas”, mas se “os sonhos realizados no
Altar são concretizados em parceria com o Altíssimo”, quem “poderá detê-Lo?”.
Seguindo
o modus operandi de todos os artigos, o texto pula para os exemplos, os
testemunhos da Confissão Positiva. São quatro ao todo, mas se citará apenas um,
o do empresário Samir Crema. Quando vendia consórcios, viu uma “oportunidade”,
a saber, o “Altar do Sacrífico”. Diz ele que a oportunidade superou uma sina
bourdieuneana (Pierre Bourdieu), digamos assim: “Ninguém na minha família tinha formação superior
nem havia um empresário em quem eu pudesse me espelhar”; justamente por “essas
razões, eu não tinha sonhos e tinha perdido expectativa de um bom futuro”. E
continua:
Depois
de ir para o Altar, eu tive a visão de ser grande, de me tornar um empresário.
Abri uma loja de móveis para festas e, pouco tempo depois, me tornei
fabricante. Hoje minha empresa atende todo o Brasil e fornece móveis para
salões de festas, clubes, hotéis, bares, restaurantes e escolas.
Ao
longo da reportagem, fotos das pessoas, a maioria casais, ao lado das empresas
e propriedades, como grandes casas com piscina, reforçam a ideia do casamento
como elemento da prática da fé e induz a constatar que a riqueza material é inerente
à prática da fé.
O
fato inconteste é que a Teologia da Prosperidade é um projeto de poder e de
sociabilidade extremamente efetivo, seja porque se coaduna com o neoliberalismo
mais cru, seja porque apresenta um projeto de redenção à classe trabalhadora
segundo o qual os indivíduos podem se salvar da miséria por meio da fé. Por
óbvio, todos não poderão ficar ricos, nem mesmo os fiéis, mas a explicação do
fracasso está dada pela subjetividade da aplicação equivocada
ou insuficiente da fé no cotidiano miserável e desigual.
Que
trabalhador informal e sem esperanças não entraria de cabeça em tal teologia?
Ao entrar na teologia, o desesperado mergulha na ideologia neoliberal,
transformando a sua vida em um constante paradoxo existencial amainado pelo
constante exorcismo da realidade.
[1] Não é objetivo analisar as nuanças de interpretação
do texto bíblico com o texto dos autores. O objetivo é tão somente compreender
como a teologia em questão possui em seus constructos proposições para o
convencimento e a adesão, assim como a relação da teologia com o contexto
neoliberal. Para ver a divergência teológica, ver as páginas 36, 37 e 38 de
Romero (1993).
[2]
Feliciano chegou a responder inquérito no STF por homofobia. Não respondeu por
racismo ou injúria racial pelo procurador à época ter entendido que a afirmação
de que os africanos são amaldiçoados por descenderem de um amaldiçoado seria
uma interpretação bíblica. Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/poder/2013/04/1257600-feliciano-volta-a-afirmar-que-africanos-sao-amaldicoados.shtml.
Acesso em 03 de janeiro de 2020. Para encontrar um debate em que o pastor
defende abertamente o amaldiçoamento, rebatido por um entrevistador,
recomenda-se o vídeo do link. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=w5XqfADjzzI.
Acesso em 03 de janeiro de 2020.
[3]
Para uma análise das duas obras, ver Neopentecostalismo e religiões afro-brasileiras:
significados do ataque aos símbolos da herança religiosa africana no Brasil
contemporâneo, de Vagner Gonçalves da Silva (2007).
[4] Para a relação promíscua entre Itamaraty e Igreja
Universal no continente africano, ver https://www.bbc.com/portuguese/brasil-50845597. Acesso em 28 de dezembro de 2019. Para ver a
questão do mercado que o continente africano representa, ver https://www.dw.com/pt-002/a-igreja-universal-do-reino-de-deus-e-o-mercado-da-f%C3%A9-em-%C3%A1frica/a-36930141. Acesso em 28 de dezembro de 2019.A
expulsão da igreja de Angola é uma grande derrota mais teológica do que
financeira.
[5]O que significa a fé com inteligência?, em https://www.universal.org/noticias/post/o-que-significa-a-fe-com-inteligencia/. Acesso em 05 de janeiro de 2020.
[6] Esta é a matéria de capa.
.
Comentários
Postar um comentário