O CASO DECOTELLI EM CINCO ATOS


 

                O caso Decotelli é um caso que, de simples e irrelevante, tornou-se razoavelmente emblemático da estrutura política brasileira. Não, o ato do racismo não é o central do caso. Expor o ato como racismo é até simples. A julgar pela falsificação curricular de quase todos os membros do atual governo, é um dado que Decotelli foi duplamente punido: perdeu o currículo e o trabalho quando a regra é perder apenas o currículo. 

                O importante é expor a estrutura do objeto, do problema. Vamos dividir em atos, como se fosse uma tragédia.

 

                ATO 1

                Bolsonaro escolheu Decotelli porque era uma indicação de Guedes com parte da ala militar. Decotelli se notabilizou não em educação, mas em mercado. Decorem isso. Mercado. Decotelli estava no FNDE na conta do Guedes, que tem grande interesse na educação por ter gerido e participação em fundo de investimento de risco em educação. Decotelli é um daqueles ratos que vive das sobras do mercado.

 

                ATO 2   

                Decotelli cumpria uma função importante para o que a imprensa cretinamente passou a chamar de “ala ideológica” (qual não é?). A julgar pelo post de Zambelli, a ex-militante de parto humanizado que se tornou militante bolsonarista, Decotelli cumpria a função de mostrar que Bolsonaro não é racista. Ela questionou Tabata, a batata liberal, se ela teria “coragem de criticar o novo ministro?”, e se ela “sabia que ele não precisou de cota para conseguir esse currículo?”.


Carla Zambelli apaga postagem em que elogiava currículo de ...

                A orbe bolsonarista se organizou nas redes sociais para defender o ministro na perspectiva de que a crítica seria uma expressão do racismo da esquerda. Bolsonaro indicou Decotelli como um acerto entre Guedes, militares e militantes bolsonaristas, que estavam insatisfeitos com a saída de Weintraub (daí o esforço de Bolsonaro na fuga de Weintraub). Ganharam um negro para usá-lo como instrumento de luta contra os negros, assim como fazem como Hélio Silva e Sérgio Camargo. E Decotelli aceitou, assim como Hélio e Sérgio. Pode ser que fosse refinado e atraente, o que não é muito difícil, mas em essência a função social construída pelo bolsonarismo é a mesma: a do negro bom apadrinhado pela classe média tradicional e burguesia brancas.

                Embora possa existir alguma afeição, o negro apadrinhado não costuma receber o mesmo amor que uma madame dispensa ao seu pet (vide o caso Miguel). É o primeiro a morrer. Como já escrevi em outras oportunidades, a representação do negro no bolsonarismo é a do negro bom, apadrinhado e embranquecido que sabe o seu lugar; essa representação funciona como polo de oposição ao negro que emergiu da identidade, que, embora detentora de limitações políticas, impõe uma reorganização simbólica do negro pautando o negro “atrevido” (e indesejado) à classe média conservadora.

 

                ATO 3   

                Decotelli sabia desses condicionantes. A julgar pela sua trajetória, fez a mesma coisa que muita gente do mercado faz com a academia. Inicia algo em algum curso sem expressão, em linha de pesquisa inexpressiva, não termina porque tem dificuldade de leitura e não tem autodisciplina, e, sem dó e culpa, recheia o currículo. Só que Decotelli é negro, e por isso caiu. Lógico que o descenso do Bolsonaro, com aumento da rejeição, e o momento político contam quando se compara com Sales e Damares. Nunca ninguém ligou para isso porque essa é a regra que ninguém pronuncia. Mansueto, ex-Secretário do Tesouro, queridinho da Globo, Bradesco e Itaú por ter sido o principal articulador do arrocho fiscal aos entes federados antes da pandemia, fez pior do que todos, inclusive Decotelli. Foi às custas do Tesouro Nacional para o MIT fazer doutorado e não entregou a tese. Teria que devolver o dinheiro, mas quando estava no governo, justamente quando estava no governo, surgiu uma nota técnica do TCU concluindo que ele não precisava devolver os R$ 850 mil dos impostos dos mais trabalhadores mais pobres que o fiscalista gastou.

                Decotelli, que provavelmente sempre fez tudo para parecer a um dos seus do mercado, descobriu o que sempre soube e ficou subentendido: é negro.  Feder, um dos primeiros indicados a substituir Decotelli, secretário da educação do Paraná, que não possui qualquer trajetória na educação e é objeto de escândalo de sonegação fiscal, tem uma falsificação similar no currículo, o mestrado. Mas tudo isso não impediu que fosse ventilado e indicado por Bolsonaro ao lugar de Decotelli, que por ironia da política está sendo combatida pelos militares, aqueles que eventualmente algum articulista da Folha insiste que não fazem parte do governo. Por outra ironia do destino, o argumento é de que Feder falsificou o currículo. Na prática, é por perderem a indicação ao Centrão. 

 

                ATO 4

                 Assim que saiu o escândalo do doutorado e do pós-doutorado, a FGV fez uma “pesquisa” relâmpago afirmando que a dissertação de Decotelli continha plágios. Estranho não ter feito quando da apresentação da dissertação! Bom, mas chamou a atenção que logo em seguida à “pesquisa” relâmpago, a FVG emitiu uma nota afirmando que Decotelli não fazia parte de seu quadro de docentes. A nota foi desmentida por Decotelli, que provou o vínculo com homenagens e documentos.

                Mas por que a FGV afirmara que Decotelli não era professor da fundação?

1)      Porque ele não era um professor efetivo, mas colaborador. Que ironia! A instituição que mais promove “pesquisas” sobre novas formas de contração e de relação de trabalho se afiançou no regime de trabalho estável em oposição ao trabalho precário para afirmar que Decotelli era apenas um precarizado e, portanto, não professor da fundação.

2)      Ao estabelecer tal afirmação, legitimou o que o mundo acadêmico já sabe: cursos de especialização de MBA é picaretagem de professores e fundações para ganhar dinheiro de picaretas do mercado que querem rechear o currículo. São cursos que não possuem qualquer relevância científica. Vendas e marketing não são ciências!

3)      Notem como o círculo se fecha. Decotelli é filho desse mundo de picaretagem. Mas é negro, detalhe que procurava solucionar ficando quietinho. A FGV fez questão de lembrá-lo, mesmo que ainda estivesse dando disciplina na fundação.

 

A FGV foi arrolada na Lava-Jato, aquela operação do FBI. Ela foi denunciada por Cabral ao juiz Bretas como uma instituição que produzia “pesquisas” que legitimavam alguma parceria público-privada importante para algum esquema. Um caso famoso é o metro à Barra da Tijuca, um contrato que a FGV ganhou R$ 19 milhões. E aí chegamos a ponto essencial: mesmo que existam alguns pesquisadores sérios, a FGV, como quase todas as fundações que fazem “pesquisa” na área de administração e economia, é picareta, que admite picaretas em seus quadros, em cursos picaretas para picaretas do mercado que querem rechear o seu currículo para algum fundo de investimento, esse sim assumidamente picareta. É o papel da distinção acadêmica e das fundações para a acumulação de capitais. Daí a pressa da FGV de se ver livre de Decotelli, o negro a ser jogado ao mar.

 

                ATO 5

                E aí voltamos ao padrinho do negro: Guedes. Está firme e forte! Obrigado!

           Hoje entregou uma carteira de crédito do Banco do Brasil de R$ 3 bilhões ao BTG Pactual, cumprindo o que disse na reunião ministerial: "tem que vender essa porra logo!"

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