Laurentino Gomes e a isenção elitista sobre o racismo nacional

LAURENTINO GOMES E A ISENÇÃO ELITISTA SOBRE O RACISMO NACIONAL

Laurentino Gomes não é acadêmico de formação, mas se notabilizou como escritor de grandes obras populares de História. Laurentino cumpre uma função muito importante, normalmente negligenciada pela academia: divulgar em linguagem simples o conhecimento científico. Longe de ser um purista, em que acadêmicos reclamam da falta de rigor técnico do autor, penso que Laurentino é, de longe, um grande divulgador da ciência em uma conjuntura negacionista. Se antes se podia ter algum luxo em negar a relevância dos divulgadores científicos, agora não mais. 

Mas Laurentino não foge, pelo visto, da perspectiva histórica do racismo construída pelas classes dominantes. Essa perspectiva defende que o racismo é matéria do outro. A ideologia da Democracia Racial tem as suas sutilezas, dentre elas, a de negar a existência do racismo em minudências que, quando vistas em contextos de outros países, são vistas como racismo. Quando da derrubada da estátua de Edward Colston, Laurentino disse que a sua derrubada corrigiu uma “injustiça histórica”, pois Colston fora um dos maiores traficantes de escravizados na Europa. Em seus tuites, explicou que Colston foi acionista da Royal Adventure into Africa, empresa que transportou 80 mil escravizados, cifra pequena comparada com a dos traficantes cariocas após nas décadas de 1820 até 1850.

A derrubada de estátuas impôs, como aconteceu com Floyd, uma discussão no Brasil. Como disse, o Brasil discute racismo mediado pelo outro, jamais por si. João Pedro foi enquadrado como racismo após o assassinato de Floyd, ou melhor, João Pedro foi enquadrado politicamente como racismo – jamais será criminalmente – graças a Floyd. Floyd também impôs o racismo a Miguel. A perda da vida de João Pedro e Miguel jamais imporia esse debate.

Ocorre que a derrubada das estátuas não se propõe a debater a derrubada das estátuas, mas o que Machado de Assis chamou de “instinto de nacionalidade”. As estátuas representam, de maneira geral, o conteúdo e a forma da construção de uma nação. Estátuas não são museus. Dentro de museus, assumem um significado; na rua, assumem outro. É possível preferível transformar campo de concentração e senzala em museus litúrgicos, mas a liturgia se perderia se uma câmara de gás e um tronco estivessem em uma praça. E assim como a História é contada pelos vencedores, a construção da Nação é arquitetada também pelos vencedores. Os trabalhadores, os vencidos, a constroem, mas normalmente a arquitetura e a engenharia do “instinto de nacionalidade” oficial pertencem às classes dominantes. 

Portanto, a derrubada das estátuas expressa uma espécie de viragem política e epistemológica na construção das nacionalidades. Um mal estar. Por que foram e são considerados heróis? Pergunta justa! Mas tem uma que é tão necessária que deve ser vista como a Caixa de Pandora. Quem os considerou heróis e por quê? Essa é a pergunta de ouro! Se a História não é isenta, a nacionalidade, que não possui nem mesmo uma mesa avaliadora de teses e revistas cientificas, também não o é.  É um palco aberto de batalhas e guerras. E como a composição étnica dos ingleses mudou radicalmente, faz sentido que o prefeito de origem jamaicana não veja a estátua de Colston com bons olhos. O “instinto de nacionalidade” inglês mudou! Laurentino talvez não concorde, mas é o que chamamos de “luta de classes”.

Sobre Colston, Lauretino acertou. A “injustiça histórica” revelou que Laurentino compreendeu que a nacionalidade é um produto da História, longe de ser um Ser petrificado, como gostaria todo e qualquer conservador. Mas o Brasil tem tradição de criar progressistas internacionais e conservadores domésticos. Como parte dos debates no Brasil é pautada pela exportação, muitos assumem a áurea de progressistas. Mas as estátuas derrubam mitos. Ora o bronze como matéria resistente, ora os seus significados perdidos em seus fragmentos. 

As estátuas derrubadas de confederados, escravocratas, traficantes e genocidas, como Leopoldo II, serviram de debate para as estátuas brasileiras. A rediscussão sobre a nacionalidade a partir dos heróis escolhidos em outros países permitiu que no Brasil os heróis imortalizados em estátuas servissem para uma discussão ainda subterrânea sobre a nacionalidade. E aí quem é progressista com a nacionalidade dos outros se transforma em conservador com a nacionalidade tupiniquim.

O Estado de São Paulo, diferente de alguns outros estados, possui uma construção específica da nacionalidade que liga os paulistas a um passado remoto. Em São Paulo, praticamente não há outra representação oficial que não seja a dos bandeirantes, voltada à construção de outras personagens. Todos os heróis das revoltas nas senzalas entre 1880 e 1888 no estado que concentrava boa parte dos escravizados do país estão plasmados somente em livros acadêmicos de História. Até mesmo uma tentativa de mudar o nome da estação da Liberdade para estação Japão já foi aventada. Assim sendo, os nomes oficialmente defendidos como símbolos do “instinto de nacionalidade” são os bandeirantes. O principal monumento é o do Borba Gato. 

Diferentemente de Colston, Laurentino se opôs à retirada ou derrubada da estátua de Borba Gato. Alegou ser “patrimônio histórico”, devendo ser preservado como objeto de estudo e reflexão. Em seguida narrou fatos da vida de Borba Gato, como a que fez fortuna em virtude da “caça de indígenas para escravizar”. Era um “fugitivo da lei”, por escravizar indígenas. Obteve perdão da Coroa Portuguesa por ter dado a localização de minas, onde se refugiara por ter matado Rodrigo de Castelo. Terminou os seus tuites afirmando que a estátua deve ficar para “as pessoas” saberem quem foi “e como foi parar no panteão dos heróis nacionais”. Lógico que tuites são muitos difíceis de analisar, mas como a repercussão é grande, e como no início dos tuites o autor se declara taxativamente contra a derrubada, o fim razoavelmente obtuso expressa que a relação entre estátua e história não foi bem apreendida, o que possibilita uma relativização de suas conclusões sobre Colston. 

Façamos o exercício proposto por Laurentino. Vamos ver por que Borba Gato se tornou herói no panteão nacional. Façamos a pergunta: Quem o considerou herói e por quê? Até o fim do século XIX, os bandeirantes eram personagens esquecidos. Não há extensos e cabais registros de congressistas no Brasil Imperial citando os bandeirantes. Não há registros volumosos de artigos na imprensa brasileira laureando os bandeirantes. Embora a nacionalidade seja uma construção do século XIX, o panteão dos heróis nacionais é uma obra da elite no começo do século XX. O resultado dessa construção foi uma nacionalidade que reproduzia o ideário do embranquecimento, em que o Brasil teria um passado mistificado pela relação harmoniosa entre escravizado e proprietário. O desenvolvimento dar-se-ia por meio do desaparecimento dos negros. A nacionalidade brasileira é anti-negro.

Mas quem escolheu Borba Gato, Jorge Velho e outros?  Quando da transformação de São Paulo, a cidade, em um centro urbano e industrial, as elites paulistanas criaram, de forma para lá de arbitrária – cafeicultor escravocrata ou ex-escravocrata não é historiador, como Laurentino deve saber – a ideia de que a origem do progresso estava no passado bandeirante de todos. Esse tipo de construção permitia que se deduzisse que os paulistas fossem naturalmente superiores, pois o desenvolvimento paulista era um dado histórico de uma espécie de Espírito Absoluto iniciado pelos bandeirantes.  

A construção passou a se dar pelo destemor dos bandeirantes, em que a elite paulistana teria no sangue os sentimentos dos desbravadores, como se fosse transmissão genética, o que faz sentido porque a elite estava submetida e era árdua defensora do cientificismo, tornando-se a maior “importadora” de mão de obra branca com o fim de se verem livres da “indolência negra”. Os bandeirantes se encaixam em uma representação genético-histórica que a elite paulistana fez de si mesma em meio às políticas de embranquecimento e de higienismo (melhoramento da raça). 

Essa construção em fim de século XIX e começo do século XX resultaria em um movimento político a partir de 1920, chamado A Comunhão Paulista. Em 1922 Júlio de Mesquita Filho, proprietário do jornal O Estado de São Paulo, antigo jornal escravagista A Província de São Paulo, fundado pelo pai, publicou um artigo na Revista do Brasil com o título homônimo ao movimento. O texto explora o mito dos bandeirantes e a ligação histórica entre eles e a sua coragem e os paulistas de 1920, restando-lhes serem o fio condutor da nacionalidade brasileira e responsáveis, enquanto elite, de guiar à nação ao desenvolvimento urbano nos moldes europeus. Para ele, não poderia “negar-se visão política aos paulistas dos primeiros séculos que, aos domínios da coroa, reconhecidos pelo Tratado de Tordesilhas, juntaram área cinco vezes superior àqueles”.   O Sul e o atual Mato Grosso também seriam resultado do trabalho dos paulistas. Vitor Nunes Leal, em Coronelismo, Enxada e Voto, fez análise brilhante sobre a forma como a coroa imperial representou a unidade territorial sobre o escravagismo, e que esse fator foi o determinante para a extensão e unidade territorial. Assim sendo, a supressão das revoltas regenciais e a manutenção do escravagismo foram os elementos responsáveis. Mas para a elite paulista, os paulistas seriam a gênese e a completude do nacionalismo em ação “disciplinada e quasi consciente”.  Júlio de Mesquita Filho, que apoiaria o Golpe Militar de 1964, publicando duas semanas depois do 31 de março um texto intitulado Roteiro da Revolução, escrevera a seguinte pérola em 1922:

"A realização deste legado do passado há de, por força, mobilizar-lhe todas as regiões.  
(...) Somos fortes, somos ainda dignos do passado das bandeiras, justamente porque às enganosas vitórias da política militante,sabemos ainda preferir as rudes vitórias que pontilham a história da nossa evolução. As sadias emoções da vida livre da lavoura, das tentativas audaciosas de que todos os dias temos notícias, empolgam a visão segura e afoita do paulista, desviando-o da estagnação acabrunhadoramente niveladora dos nossos partidos políticos. Nos momentos capitães da história nacional, de São Paulo sempre partiu a palavra que haveria de decidir dos destinos da nacionalidade. José Bonifácio e Feijó — o mais paulista de todos os paulistas—marcam os dois grandes ciclos da evolução nacional".

Mas essa construção estava longe de pertencer a todos. Os negros estavam fora, segundo o magnata do O Estado de São Paulo, pois a estabilidade social e política do escravagismo e do desenvolvimento fora rompida quando "entrou a circular no sistema arterial do nosso organismo político a massa impura e formidável de 2 milhões de negros subitamente investidos das prerrogativas constitucionais” (A Crise Nacional, Júlio de Mesquita Filho). O grupo do O Estado passou a dirigir a burguesia paulista após a Revolução de 1930. Em 1934 criou a sua universidade, como fruto de acordo com Vargas intermediado por Armando Salles Oliveira, interventor de certa forma escolhido pelo próprio grupo. As obras sobre o mito pulularam, como O trem corre para o Oeste, de Fernando de Azevedo, em que se estabelece uma mitologia de bravura entre os bandeirantes, imigração e expansão ferroviária. Não se pode esquecer que o grupo tinha publicado Os Sertões, descrição racializada do povo nordestino, e realizou um Inquérito da Instrução Pública, em 1926, cuja conclusão foi a necessidade de construir um sistema de ensino rápido e técnico para os trabalhadores e formativo-elitista para a classe média e a burguesia.

O mito paulista é tão importante que está no ato de fundação da própria Universidade de São Paulo, no Decreto-Lei 6.283/34:

"- considerando que a formação das classes dirigentes, mormente em países de populações heterogêneas e costumes diversos, está condicionada à organização de um aparelho cultural e universitário, que ofereça oportunidade a todos e processe a seleção dos mais capazes;
 - considerando que, em face do grau de cultura já atingido pelo Estado de São Paulo, com Escolas, Faculdades, Institutos, de formação profissional e de investigação científica, é necessário e oportuno elevar a um nível universitário a preparação do homem, do profissional e do cidadão".

No livro que escrevi, fruto da minha tese de doutorado, A Universidade Mercantil: a relação entre universidade pública e capital privado, concluí, como muitos que estudam esse momento histórico, que a construção da narrativa da superioridade dos paulistas fundamentam-se na República de Platão, em que caberia aos brancos da elite paulista a direção e a decisão dos rumos da Nação como se fossem filósofos na pólis. Há uma análise detalhada sobre a relação entre Comunhão Paulista e a USP, criada para formar a elite paulista que guiaria a Nação, em A Universidade da Comunhão Paulista, de Irene Cardoso, um clássico da História da Educação. Apenas faria uma correção ao que escrevi no livro: a formação da elite paulista e a construção do mito bandeirante é a síntese da Ideologia do Embranquecimento. É uma teoria da superioridade racial e uma justificativa da hegemonia paulista sobre as outras elites regionais. 

Bom, dada a explicação, resta concluir que a estátua do Borba Gato representa a mistificação da elite paulista sobre si mesma, sem qualquer respaldo científico. Não é possível ligar os bandeirantes a ninguém, geneticamente e historicamente. São momentos e modos de produção completamente diferentes. A mistificação feita reproduzia o ideário racista do século XIX e XX que desembocou no fascismo e no nazismo, fincada em uma gradação racial. É um racismo neocolonial introjetado no Brasil por meio de sua elite da época contra parte do povo brasileiro. Por fim, representava o ideal de embranquecimento da população brasileira, feito por meio dos heróis nacionais e consubstanciado por Políticas de Estado, como a proibição de imigração de asiáticos e africanos, e de negros de outros continentes, e da criminalização da vadiagem e dos capoeiras, transformando o sistema prisional em espécie de depósito de negros,  mais ou menos como em outros países americanos, como nos EUA. Sim, sei que não gostam de se comparar aos norte-americanos. Mas até isso é uma construção histórica da Ideologia da Democracia Racial.

Laurentino não é acadêmico de formação. A defesa do uso do termo escravos com a justificativa de fidelidade com algum dicionário revela um vazio formativo, pois é comum na ciência a criação de palavras e neologismos para sintetizar múltiplos aspectos de um objeto. Mas inegavelmente ele cumpre uma boa função em meio ao negacionismo. Espero que Laurentino saia do negacionismo histórico nas pautas domésticas, o que o torna um conservador. Ser progressista com o país dos outros é um exercício fácil, pois é desprovido de responsabilidades políticas. É o “instinto de nacionalidade”.

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