ANTIRRACISMO E ANTIFASCIMO SEPARADOS: O NOVO “NAZISMO É DE ESQUERDA”

    A dissociação da luta antirracista do antifascismo é defendida por setores identitários de parte do movimento negro; a dissociação do antifascismo da luta antirracista é defendida por setores sectários de parte da esquerda mais autonomista. O polo oposto ganha um presente: o fascismo desvinculado do racismo e o racismo desvinculado do fascismo, transformando-se em esferas separadas e autônomas.

            O erro de ambos possui a mesma matriz: a negação da história por meio da cristalização de um entendimento fragmentado e pós-moderno de suas próprias histórias, ou de suas próprias “narrativas”, como costumam dizer. Otimizam-se nos grupos, como decorrência da visão fragmentada, construções do antirracismo e do antifascismo vinculadas a comportamentos e símbolos, consolidando-se um conjunto simbólico da militância, que fica presa no próprio grupo (a famosa bolha), pois é um conjunto simbólico socialmente restrito.

            Nas últimas semanas o mundo ocidental passou por um turbilhão político em que alguns símbolos foram atropelados. De uma hora para outra, chegou à mídia temas como racismo estrutural e genocídio negro. Tudo se iniciou pelo assassinato de George Floyd, que serviu de mediação aos movimentos sociais brasileiros. De certa, iniciou-se por uma mediação historicamente conhecida no Brasil: a discussão do racismo por meio de fatos internacionalizados, pois a dedução de que existe racismo no país nunca foi aceita pelas classes dominantes e pela classe média tradicional, assim como por parte dos trabalhadores brancos. No congresso nacional, ao longo do século XX, o racismo foi discutido de forma ampla apenas duas vezes.

A primeira foi por meio de um projeto de lei proposto em 1921, o qual propunha a proibição da entrada de negros no Brasil diante da notícia de que uma empresa, a Brazilian-American Colonization Syndicate, abriria uma colonização de negros norte-americanos em Mato Grosso. O argumento consensualizado entre aqueles que defendiam o projeto e aqueles que defendiam, mas achavam que internacionalmente pegava mal à imagem do país, foi o de que os negros norte-americanos trariam na bagagem, além das roupas, o racismo em uma sociedade que não era mais racista, importando o “ódio aos brancos”. Como não existia racismo no Brasil para os congressistas e a mídia, a imigração de negros importaria o racismo. Pesou tanto quanto o entendimento de que admitir a imigração de negros enegreceria uma sociedade que caminhava para o embranquecimento. Na época sobrou para a diplomacia brasileira dar a negativa individualmente, que coincidentemente nunca era para brancos europeus. Algo parecido com os protocolos policiais quando do assassinato de alguma criança negra.

A segunda foi quando da elaboração, discussão e promulgação da Lei nº 1.390/51, conhecida como Lei Afonso Arinos, que foi desenhada às pressas em virtude de a bailarina afro-americana Katherine Dunham ter sido proibida de se hospedar no Hotel Esplanada. O impacto da notícia e a repercussão internacional fizeram um congresso com o mesmo perfil do de 1921 criar uma lei contra o racismo, com baixíssima capacidade de execução ao longo da história, uma vez que o ônus da produção de prova pertence ao discriminado. Mas mesmo que se diga que o peso do ônus foi atenuado com o advento do celular, como provou George Floyd, lembro que a prova depende de fatores externos à produção dela, como o próprio racismo, como demonstram todos os vídeos semelhantes ao de Floyd gravados no Brasil amplamente ignorados pela mídia, judiciário e população em geral.

Ao se analisar a história institucional do racismo no Brasil, chega-se a uma conclusão necessária: a mídia e o congresso pautam-se mais pela repercussão internacional de casos de racismo do que por casos brasileiros. Isso passa pela negação do racismo, construída pela ideologia da Democracia Racial e por movimentos conservadores, que hoje estão no poder, como pela autoprojeção narcísica que a burguesia e a classe média tradicional fazem de si. É uma boa válvula de escape para não constatar a importância do racismo na reprodução das relações de produção, em que, por óbvio, burguesia branca, classe média branca e parte da classe trabalhadora possuem todas as vantagens de controle sobre os capitais econômico, educacional, cultural e simbólico.

Assim como Katherine Dunham, o fato é que Floyd permitiu que João Pedro, Miguel e tantos outros fossem classificados como racismo, em vez de fatalidade, tragédia ou erro de protocolo da polícia. Não que não se tenha tentado. Enquanto que para João Pedro as manchetes e os conteúdos foram algo como “João Pedro foi morto por policiais”, inexistindo praticamente as palavras racismo e negro em quase todos os textos de todos os meios de comunicação (quando houve foi por meio de entrevista), para Floyd a associação foi e é imediata. “Quem era o americano negro”, “morte de homem negro”, “quem era o americano negro morto”, “protestos pela morte de homem negro”, “Minneapolis declara estado de emergência por protestos contra o racismo policial”, “polícia de Minneapolis , acusada de racismo, enfrenta a ira da cidade após morte de negro” foram as manchetes dos principais meios impressos e virtuais de comunicação do país, feita em uma pesquisa de busca após uma semana do assassinato de Floyd no google com as mesmas palavras chaves – nome (Floyd e João Pedro), raça e racismo.

O fato é que a associação de João Pedro, Miguel e outros como práticas racistas colocou os movimentos sociais em uma encruzilhada com muitos caminhos. A principal no momento, sem dúvida, é a relação entre antirracismo e antifascismo.

Para entendermos essa relação, é preciso voltarmos ao século XVIII e XIX. A raça foi uma invenção do modo de produção capitalista em sua fase de acumulação primitiva, a tal ponto que não é possível pensar a acumulação primitiva inglesa sem o capitalismo mercantil e a mercadorização de africanos, no qual o escravagismo asiático-africano se transformou em um tráfico mercantil controlado pelos europeus. O processo de mercadorização do ser humano pressupõe a sua coisificação, pois somente coisas podem ser trocadas por outras coisas, como lembra Jacob Gorender em O Escravismo Colonial. Ao transformar o indivíduo em coisa, a coisa não pode ser compreendida como humano, devendo a sua história, cultura e linguagem serem negadas. O abstrato da produção social da mercadoria escravizado permitiu a generalização de povos distintos em uma única raça.

No século XIX, após a Revolução Haitiana, acelerou-se as abolições no continente americano, muito em virtude das revoltas de escravizados e da incompatibilidade com o estágio do capitalismo inglês e norte-americano. Houve uma viragem na principal potência da época: a defesa do fim do escravagismo e do tráfico continental de escravizados concomitante à defesa da exportação de capitais ingleses, que se acumularam de tal monta que não reuniam condições materiais de continuar em acumulação ampliada em seu território. Surge, nesse momento, as teorias cientificistas e fatalistas, que, em meio à instauração de direitos aos ex-escravizados, davam conta da superioridade do europeu branco sobre os africanos e asiáticos. Churchill, por exemplo, matou de fome três milhões de indianos, chegando a dizer com todas as letras que eram inferiores. O primeiro-ministro inglês defendeu que Gandhi, por exemplo, fosse preso e executado, e foi radicalmente contrário à Independência da Índia. Não à toa, a sua estátua foi pichada em um domingo com uma verdade inconveniente para liberais e conservadores: genocida e racista. Portanto, no século XIX, para justificar a dominação de países europeus e dos EUA na África, Ásia e América Latina, teorias criadas por europeus e norte-americanos brancos, pelas suas burguesias nacionais, defendiam que brancos eram superiores, devendo colonizar todos os considerados por eles mesmos inferiores e não civilizados. A superioridade racial está fundamentalmente atrelada ao neocolonialismo do Estado liberal e burguês, devendo-se entender o fascismo como a radicalização das premissas do neocolonialismo, dentre elas o racismo.

No Brasil essas teorias cristalizaram-se no eugenismo, na frenologia (criminologia italiana) e no higienismo. Nos EUA deu corpo teórico aos supremacistas e à Ku Klux Klan, que assumiu grande protagonismo no começo do século XX após o lançamento do filme O Nascimento de uma Nação (1915) e a sua exibição na Casa Branca para o presidente Woodrow Wilson, grande defensor do movimento supremacista.

Mas, em vez de fazer uma análise comparativa entre Brasil e EUA, proponho algo diferente para entendermos o racismo e o fascismo nesses dois países. Vamos analisar ambos através da Alemanha, que traduziu esse ideário no nazismo, em que judeus à época eram considerados não brancos e não europeus.

A Alemanha e a Itália chegaram tardiamente nas disputas neocoloniais. É comum entender as duas grandes guerras como expressões dessas disputas neocoloniais, o que é verdade, mas tão importante quanto é compreender que justamente esses dois países matizaram como nenhum outro país europeu as teorias da racialização desenvolvidas e aplicadas por todos no século XIX e XX. Pode-se, com certa tranquilidade, ver continuidade entre as teorias de racialização britânicas com as alemãs e as italianas, até porque Lombroso era usado em todos os países, inclusive no Brasil, como mostra Nina Rodrigues. Da mesma forma que a análise de crânios era feita na Inglaterra com ex-escravizados jamaicanos, era com judeus na Alemanha e negros no Brasil. Está na gênese dos sistemas policial e prisional de todos os países ocidentais. Por isso que, quase que invariavelmente, a nacionalidade está vinculada a uma autoprojeção racial.

Em Mein Kampf, Hitler se declara impressionado pela forma como os Estados Unidos haviam decidido se “limpar” de latinos e eslavos, bem como asiáticos (os eslavos são um capítulo à parte para Hitler). Assim como o Estado norte-americano e o Estado brasileiro usavam o “cientificismo racial”, Hitler chamava o antissemitismo e os campos de concentração de “antissemitismo científico”, o que já estava razoavelmente espraiado na Europa, como mostra o Caso Dreyfuss e as justificativas do Estado francês. Emile Zola não cita nenhuma vez a palavra judeu para se ater ao processo legal. A carta Eu Acuso!, retratada como um alento psicanalítico por franceses, não impediu décadas depois o amplo colaboracionismo francês em muito justificado pelo antissemitismo.

Há evidentes similaridades entre as leis raciais norte-americanas e as leis raciais alemãs. Recomenda-se o livro Hitler’s Amarican Model: the United States and Making of Nazi Race Law, em que o jurista e pesquisador James Whitman realiza um estudo comparativo entre as duas legislações. Os nazistas citavam o exemplo norte-americano, inclusive o da “solução final” dada aos nativos, como exemplo não somente do fato em si, mas da prática do extermínio sem um ordem legal-normativa, um ato formal, a ponto de, como lembra Alex Ross, em Como o racismo americano influenciou Hitler: as raízes internas e externas do nazismo e de seu líder supremo, Hitler ter dito reiteradas vezes que o Volga (de Stalingrado à Moscou) seria “o nosso Mississipi”, pois a “Europa – e não a América – é que será a terra das oportunidades ilimitadas”.

Aimé Césarie, em Discurso sobre o Colonialismo, afirmou que o choque do nazismo e do fascismo se devia ao fato de as práticas da colonização europeia nos continentes africanos e asiático terem sido utilizadas no continente europeu. Os escritos e falas registrados de Hitler dão fundamento à conclusão, com uma correção: assim como Hitler não enxergava humanidade nos semitas, tampouco depositava algo nos eslavos e no leste europeu. Na visão do pangermanismo alemão, eram tão não brancos quanto negros, só que não brancos dentro do território a manchar a nacionalidade alemã, e obstáculos entre eles e os comunistas no leste europeu, o grande mal a ser destruído.

Como lembra Alex Ross, a Lei de Esterilização Alemã, de 1934, foi inspirada no programa de esterilização da Califórnia. A primeira execução em câmara de gás foi realizada em Nevada, em 1924, em que o gás Zyklon-B foi licenciado para a empresa alemã I.G. Farben e amplamente usado em Auschwitz. Da mesma forma, Hitler amparou-se na Lei de Imigração de 1924 que, além de servir como modelo, impediu a entrada de milhares de judeus nos EUA.

A vinculação de grandes industriais norte-americanos com o nazismo não pode ser feita apenas no sentido da sincronização aleatória de idiossincrasias, mas de síntese de políticas. Henry Ford foi condecorado com medalha nazista e foi positivamente citado em Mein Kampf, pelas publicações supremacistas em seu jornal. A síntese deve-se à ascensão quase que universal do fascismo nos países ocidentais, recrudescida pelas disputas neocoloniais. Se para a Europa era a África e a Ásia, para os EUA era a América, materializada na Doutrina Monroe, “América para os americanos”. Por óbvio, os americanos são os EUA, como nos filmes hollywoodianos, e a América é o território geográfico, em que do México para baixo tudo deve ser um quintal dos americanos. A importância política e histórica da Revolução Cubana se inscreve quando rompe com uma doutrina fascista que vigorava e vigora mesmo após a II Guerra Mundial, quando supostamente, segundo liberais e conservadores, o fascismo teria sido destruído pelo mundo ocidental. Atrelar fascismo aos italianos e nazismo aos alemães em uma história datada como se tivesse terminada consiste em estratégia política para desvincular o liberalismo do fascismo e do racismo.

Após a II Guerra Mundial, as ideologias supremacistas na Europa foram abandonadas, ao menos oficialmente, como expressa Hayek em O Caminho da Servidão, quando admite somente a entrada dos EUA na liga e a restrição aos países civilizados. Em contrapartida, a supremacia racial continuou no continente africano e asiático. A França, a libertária, até hoje exerce forte influência, inclusive militar, em países africanos, como Argélia, Marrocos, Tunísia, Senegal, Madagáscar e Costa do Marfim. Não se pode esquecer o Franco CFA, moeda colonial criada em 1945, que até 2019 (o vínculo da atual moeda com o Euro permanece) foi a moeda de oito países africanos, dando o direito à França de participação na governança dessa moeda, o que resultou ao longo da história em “excelentes negócios” ao Tesouro e empresas franceses.  Moçambique conseguiu a sua independência de Portugal apenas em 1975, quando a FRELIMO derrotou o exército português. Chega a ser cômico organizações europeias e norte-americanas tecerem críticas à “ausência de democracia” nos países africanos.

A Alemanha, por seu turno, além da ajuda dos norte-americanos para os campos de concentração, câmaras de gás, leis de imigração e eugenia, internalizou algumas experiências fundamentais ao nazismo no continente africano. A mais famosa e ao mesmo tempo ignorada foi o ocorrido contra os hererós e namaquas, onde hoje é a Namíbia, no qual o Estado alemão percebeu que se poderia ter métodos mais eficazes de matança. No caso, foi o envenenamento de poços após tentativas de revoltas contra o exército alemão. Os que sobreviveram foram colocados em campos de concentração, em que cada hereró foi registrado por um número. Empresas alemãs (a exportação de capitais) usavam os hererós em trabalhos forçados. Ali o Estado alemão internalizou uma dada racionalidade administrativa que seria empreendida na II Guerra Mundial contra semitas, eslavos e negros, estes dentro da Alemanha e fora do continente europeu. Os crimes da II Guerra Mundial são amplamente assumidos pelos alemães, os do século XIX são amplamente negados. Esse é um esplêndido exemplo de racismo do Estado alemão. A Alemanha é o país que se tornou guardião do antissemitismo no planeta por meio de uma autocrítica poucas vezes vista. O problema é que muitas vezes a autocrítica se sectariza e transforma a crítica em um ser cego, surdo e mudo com o racismo empreendido pelo Estado de Israel contra árabes e palestinos, assim como para com os outros crimes alemães cometidos contra outros povos, o que reforça a sentença de Aimé Césaire. A polêmica com Achille Mbembe com parte da establishment alemão, que cometeu o deslize de tecer essa crítica aos alemães, retratado por Michael Rothberg em O Fantasma da Comparação, expressa esse determinante neocolonial. Por essas e outras, As Origens do Totalitarismo, de Hannah Arendt, é uma grande fantasia liberal sobre o fascismo, como analisa Domenico Losurdo em Linguagem no Império: léxico da ideologia estadunidense, desgraçadamente reproduzida como mantra pelo Estado alemão e alguns grupos da esquerda. Não tem lastro histórico e científico, como lembra Jones Manoel, que não titubeia em relacionar essa análise com uma boa dose de racismo colonial.

Nos EUA e no Brasil, assim como na Colômbia, Argentina, Venezuela, Uruguai e países caribenhos, essas teorias justificaram políticas segregacionistas e eugenistas, como no começo do século XX no Brasil, em que se acreditava que os negros desapareciam com a imigração europeia. Aliás, por que os europeus foram escolhidos pelo governo brasileiro? Porque a elite da época considerava que seria impossível desenvolver o país com negros. Isso fez com que os negros fossem direcionados à miséria e à favelização nos morros e periferias das grandes e médias cidades.

A ideia de que foram simplesmente jogados à própria sorte é equivocada. O Brasil criou políticas específicas, como o Código Criminal, em que estipulava a vadiagem (falta de emprego) e a atividade da capoeira como crimes, juntamente com a redução da maioridade penal de 14 para 9 anos. Tudo sem citar a palavra negro, mas sabendo que os negros estavam sem trabalho por terem sido substituídos. É uma pena que Hitler não chegou a conhecer a experiência brasileira, pois é provável que ficaria orgulhoso com a morte de milhões de nativos e africanos, assim como a Lei de Imigração brasileira e as medidas de eugenismo, apesar de que fosse mais provável que, quando interpelado, desse uma resposta parecida à dos norte-americanos para os sulistas em Bacurau.Em suma, a burguesia e a classe média tradicional brasileiras se apropriaram do receituário liberal-fascista que vigorou no fim do século XIX e começo do século XX, em que vinculava formação nacional com raça, como evidencia o artigo 1º do Decreto nº 528, de 28 de junho de 1890, em que declarava livre a entrada de indivíduos válidos e aptos ao trabalho, “excetuados os indígenas da Ásia, ou da África”. O Brasil ter tido o maior partido nazista fora da Alemanha, como mostra o documentário Menino 23, e os EUA ter “importado” boa parte dos cientistas e alta burocracia nazista após o fim da II Guerra Mundial, fazendo-os residir no sul dos EUA, principal reduto da Ku Klux Klan e de supremacistas, não foram meras coincidências. Da mesma forma como não foi coincidência a imigração de muitos nazistas para a Argentina, um país que conseguiu embranquecer a população matando negros em guerras e em epidemias, no qual os negros ficavam confinados em bairros específicos entregues ao vírus, transformando-os em uma espécie de campo de concentração.

Mas o Estado liberal lida com muitas mediações. Assim como no Brasil a abolição veio acompanhada de um Código Criminal que encarcerava negros, na década de 1970, os EUA, após a luta pelos direitos civis na década anterior, formularam uma nova doutrina de controle social: a Guerra contra as Drogas. Essa doutrina é voltada exclusivamente para pobres, uma vez que as atividades policiais e militares se voltam contra as drogas de baixo custo. Na prática, fez com que os negros passassem a ser perseguidos por forças policiais, encarcerados e mortos. Não à toa, Brasil e EUA apresentam as maiores populações carcerárias do planeta. No Brasil, serviu para criar forças policiais de intervenção nas favelas e grupos de extermínio, chegando às milícias nas décadas de 1990 e 2000. Por isso, é a polícia que mais mata no planeta, quase sempre pobres e negros. É uma construção histórica do Estado liberal.

Os destacamentos militares oficiais e os grupos de extermínio cresceram sob os olhos lacrimosos e protetivos da classe média tradicional – branca, formada pelas políticas restritivas contra negros na República Velha – até se transformarem em milícias e em grupos políticos profissionalizados. Na Doutrina do embranquecimento, em vigor até a Ditadura Civil-Militar, havia a crença que se criaria uma sociedade urbana e desenvolvida somente sem os negros, classificados como elementos da persistência do racismo que, uma vez extintos, solaparia o próprio racismo. Na atual doutrina, se não extintos, ao menos controlados por meio da força. A segunda doutrina jamais existiria sem a primeira, tanto nos EUA quanto no Brasil.

Desvincular fascismo de liberalismo, muitas vezes tratando o fascismo e o nazismo como construções pessoais de lideranças (Hitler, o fracassado) e negando o papel ativo do empresariado e de seus capitais, ou tratando como um lapso de loucura coletiva, é uma falsificação histórica que cumpre a função de desvincular o liberalismo e o capitalismo dos males que produziram ao longo da história. Daí, racismo e fascismo passam a ser construções cognitivas e comportamentais que podem ser corrigidas mediante algum processo educacional. O fascismo é a radicalização do racismo neocolonial e das teorias supremacistas. Se é racista, é fascista. Se é fascista, é racista. Ser antifascista é ser antirracista, ser antirracista é ser antifascista. Desvincular um do outro é uma falsificação tão grande como o mantra do nazismo como movimento e ideologia de esquerda.


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